Nossa sombra comum
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10
Domingo, 27 de Abril de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Ainda faltavam uns cinqüenta metros para a faixa de pedestres quando se ouviu o freio brusco daquele carro parando desesperado ao sinal vermelho. À primeira vista parecia uma exagerada obediência ao código de trânsito. Mas o manual de boa educação dos condutores de veículos não recomenda parar de uma vez nem tão longe das listras brancas pintadas no asfalto. O motivo da atitude do motorista era na verdade usufruir de uma minúscula sombra causada por uma destratada plantinha solitária que sobrevivera no canteiro central de uma avenida da capital. A sombra era tão pequenininha que mal dava para proteger dos raios solares o garboso chofer.
Cenas como essa são repetidas diariamente nas ruas e avenidas de Fortaleza. O que varia é o tamanho da sombra, o modelo do carro e intensidade da freada. Não importa se atrapalha o trânsito, quem está na frente se sente o dono da sombra. Mesmo quando falta um bom trecho para chegar ao semáforo e a parada irregular normalmente provoca engarrafamentos. É um comportamento intrigante e desafiador. Ao mesmo tempo em que, por prática ou omissão, aceleramos o processo de redução do verde urbano, nossos reflexos condicionados demonstram o quanto desejamos a mais tenra sombrinha que seja. A busca por espaços nos quais possamos ter a sensação de nos refrescar passa por reações instintivas e trai a lógica dos descuidos do nosso primitivismo urbano.
Esse choque entre a vontade de dispor de sombras e a ausência de esforços para que elas existam não é uma prerrogativa da extravagância fortalezense. Ao longo do litoral cearense é possível observar as pessoas procurando sombra para estacionar. São raros os hotéis, pousadas, restaurantes, bares e barracas que tratam de oferecer esse tipo de conforto aos seus clientes. E não é só em termos de cuidados com carros quentes e abafados que se percebe a imprevidência. Poucos são os lugares capazes de proporcionar áreas verdes e cobertas de sombras como opção aos usuários de nossas belas praias. Como a maioria das pessoas se lamenta, mas ninguém reclama pra valer, ganha a quentura e o desconforto.
Pelo interior era comum ter planta no terreiro de casa para abrigar os animais e jogar conversa fora ao sabor da boa brisa de uma sombra densa. Até as calçadas das cidades eram bem arborizadas. A chegada de fiação para energia elétrica, telefone, cabo de tevê e outros importantes serviços proporcionados à população foi escangalhando as árvores. É revoltante a grosseria desse tipo de poda. As árvores são imoladas com tirania e ficam de dar dó. Mas com tudo isso não deixam de levar adiante o impulso natural de nos presentear com bem-vindas sombras. Sombras que todos querem, mas poucos se dão conta de que é preciso cuidar. Derrubar árvore em nossa terra é tão impunemente tranqüilo quanto à omissão que nos abstêm de lutar para que permaneçam existindo para o nosso benefício.
Cada árvore que cortamos ou que deixamos alguém cortar desnecessariamente vai subtraindo qualidade de vida e reduzindo a beleza do claro-escuro, do verde brilhante e do frescor da nossa sombra comum. Sem o anteparo vegetal, os raios solares tomam conta das cidades, praias, sertão e até mesmo de parte das serras. Manifestamos o transtorno causado pela elevação da temperatura. Sabemos do processo de desertificação rural. Xingamos o calor infernal que abala Fortaleza. Sofremos com tudo isso e parece que não nos damos conta de que a lamúria não resolve nada. Corremos além da conta para pegar uma sombra e não mexemos nada para que ela exista.
Viúvas e viúvos do verde é o que somos nessa cidade-cemitério, nesse rincão cearense da anti-ecologia. Tivéssemos um pouquinho de consciência do mal que nos fazemos com essa postura estupidamente resignada, trataríamos de reverter a situação degradante em que vivemos. O primeiro passo é a descoberta da importância da sombra em nossas vidas. O esforço para tal constatação é mínimo. Garanto. Está sob o nosso nariz, nas mais imprevistas atitudes cotidianas. Queremos mais sombra. Sentimos essa necessidade. Não há razão para esconder a hemeralopia que nos cega de tanta luz.
Produzir sombra. Eis a questão. Sombra para todos os pedestres e carros. Sombra para as crianças brincarem nas praças. Sombra na praia. Sombra com plantas de cheiro. Sombra com planta de todas as cores e flores. Sombra coberta de frutos. Sombra para descansar a vista. Sombra para namorar, para gazear, para sentir o vento circular. Sombra para a gente se encontrar. Sombra para guardar o ciúme do sol.