Por trás do desafio das Ongs
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10
Domingo, 08 de Junho de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A expressão ONG foi aquilatada pela ação de um grupo de organizações da sociedade civil caracterizadas pela ousadia de ter entre os seus objetivos a luta pela emancipação social, calcada no apoio efetivo aos movimentos sociais, no empenho em favor da democracia participativa e na busca por alternativas solidárias de desenvolvimento. Com o declínio da ditadura militar no Brasil esses atores passaram a vivenciar seus compromissos no plano da formação de uma cultura de valorização do sujeito e da expansão dos direitos sociais, através de proposições de alternativas políticas, econômicas, sociais, culturais e ambientais.
A guerra fria, evidenciada por toda sorte de tensões causadas pela disputa da hegemonia mundial, existente entre EUA e URSS, teve influência positiva na consolidação das organizações não-governamentais brasileiras. Na tentativa de retardar os efeitos diplomáticos, ideológicos e econômicos das duas superpotências, vários países europeus ampliaram suas contribuições a essas articulações de cidadania. O papel instigador assumido pela igreja progressista ganhou reforço financeiro das agências de cooperação internacional e, com isso, as organizações não-governamentais ampliaram sua força participativa.
Com a queda do Muro de Berlim (1961 – 1989) – simbolizando o fim da guerra fria – e com a conclusão da transição democrática (1985 – 1988) – representada pela promulgação da nova Carta Constitucional Brasileira – os recursos provenientes do exterior para financiamento das ONGs começaram a rarear. O Leste Europeu passou a ser o alvo de boa parte desses subsídios políticos. Estabeleceu-se a ordem democrática no país, mas as organizações não-governamentais, que tanta importância tiveram nesse processo, foram ironicamente punidas pelo resultado da conquista e começaram a entrar em crise de sustentação.
O trabalho das ONGs sempre foi muito recatado e a sociedade como um todo não conseguiu assimilar o alcance da sua força de afirmação do interesse público e coletivo. Nesse vácuo de visibilidade, o governo e a iniciativa privada criaram respostas à demanda social por participação, com ações do tipo Comunidade Solidária e Responsabilidade Social. Por terem desenvolvido uma tecnologia de relacionamentos comunitários destacada pelo diálogo, mobilização e credibilidade, com custo bastante inferior aos praticados pelos programas oficiais, além de atuarem em todo o território nacional, as ONGs passaram a ser vistas como potenciais tarefeiras da nova estratégia.
A sinalização de que haveria dinheiro para empreendedorismos sociais e ambientais terceirizados gerou uma proliferação de organizações não-governamentais, com as mais variadas bandeiras, reduzindo a concentração do teor dos princípios instituidores desse modelo de ação da sociedade civil. A convicção cedeu lugar à conveniência e a retórica da inclusão social ganhou unanimidade. Em termos de foco pode-se dizer que essa concordância generalizada é desejável, embora no que diz respeito à transformação concreta da situação de desigualdade social tudo isso mais pareça com uma recomposição de comando do estado e do mercado na condução da sociedade.
O estímulo à criação de OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) foi uma das maneiras que o governo encontrou para manter o domínio da situação nas esferas não-governamentais, inclusive com relação aos recursos externos destinados as ONGs. Todos os empreendimentos de caráter particular, declarados como sem fins lucrativos, foram abrigados sob um guarda-chuva institucionalizado como Terceiro Setor. Essa engenharia, capaz de emular a um só tempo tantas atitudes de uma sociedade aprendiz, provocou uma crise de comportamento nas pessoas desse âmbito de crenças alternativas. Muitas delas passaram a reproduzir posturas de competição desleal, na disputa por “clientela” social, verbas e espaços geográficos, e a usar situações de pobreza como garantia de nichos de poder e do próprio emprego, contradizendo frontalmente o conceito original das ONGs.
O momento é de efervescência. A doutrina estadunidense assume a deliberação de se auto-proclamar o governo e a polícia do mundo, numa desproporção que pode inibir a União Européia de liberar incentivos contra-hegemônicos para se limitar a assistencialismos em países africanos e asiáticos. Por outro lado, o Brasil vive os primeiros passos de um governo radicalmente associado às manifestações da sociedade civil e o papel das ONGs ainda é uma incógnita. O fortalecimento das redes e fóruns de organizações não-governamentais, em articulação pelo país, talvez encontre respostas para o novo desafio. A sociedade precisa desse instrumento que emana da sua própria vontade civilizatória e que será tão mais importante quanto for a popularização da clareza da sua razão de ser.