Manu Chao e a aula de laços afetivos
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 09 de Julho de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Um dia, um rapaz um tanto andarilho, um tanto agregador, se ofereceu para tocar e cantar para os colegas de escola do seu filho. Queria partilhar o que faz, colocar suas leituras do mundo a serviço da meninada. Mostrar que há de tudo no pequeno jardim que conseguiu regar em 44 anos de vida. Queria passear em seus pequenos planetas. Levou imagens de trens e aviões para descobrir perguntas, viajou em várias línguas e se comunicou no idioma lúdico da infância. Era uma vez Manu Chao, um artista internacionalmente conhecido, em sua versão papai.
Quando alguém faz uma contação de histórias está relendo a própria existência, repassando lições e, sem perder nada, está ensejando aos outros ganhos no domínio sem fronteiras da imaginação. Voz, violão e “portunhol”. Eis os instrumentos desse encontro de “paella” com baião-de-dois, no qual o ar de simplicidade instruiu e divertiu por meio do exemplo, numa descontraída aula de vínculos afetivos. Estimular a perceber sem dirigir é o grande papel da arte. Nada é tão ou mais transformador do que uma possibilidade de sentir. E as crianças inventam a compreensão graças à capacidade que têm de se entregar e de se apropriar do jogo das sensações no estado de inocência. Afinal, elas se desenvolvem a partir das hipóteses que criam e testam a cada instante.
Nos tempos atuais quando a importância da interação entre as pessoas está eclipsada pelo triunfalismo do simulacro da celebridade, o encontro de Manu Chao com os colegas do seu filho no Canarinho mostra que não é tão complicado usar a nossa rede de ligações emocionais para aumentar o diâmetro do mundo. Meninos e meninas desfrutaram da apresentação do pai de um amiguinho e não como fãs do cantor. Observando aquela brincadeira toda fiquei pensando se esse tipo de proximidade pelo viés do carinho não deveria ser mais intensamente associado ao processo educativo. As escolas bem que poderiam ter programas contínuos abertos aos pais que quisessem mostrar aos colegas dos filhos o que fazem. Não interessa a profissão, todas são curiosas e admiráveis.
Com a expressão que representa entre os jovens, Manu Chao poderia ter feito um badalado show para arrecadar alimentos não perecíveis a serem doados a alguma instituição caritativa. Por que, então, ele terá preferido apenas cantar para um grupo pequeno de crianças? Como peregrino das plagas equatoriais ele certamente já aprendeu a desconfiar desses paliativos e de muitas das instituições mantidas pelos próprios patrocinadores do ambiente miserável que dizem combater. Suas incursões sociais estão mais aproximadas de movimentações como as de Chiapas, dos sem-terra e do Fórum Cultural Mundial. Manu Chao é um astro orgânico contraposto às estrelas “transgênicas” incensadas pelas forças de indução hegemônica dos desejos e do individualismo na cultura da aparência.
A mentalidade globalizada nos acompanha ao longo da construção latinoamericana em duas vertentes bem distintas. De um lado, os seguidores de Hernán Cortez e Francisco Pizarro, sempre dispostos a dizimar nações, como estes fizeram com os Astecas e os Incas, em troca de prata e poder. De outro lado, os descendentes de Robinson Crusoé e Knulp, personagens que se aventuravam pelo mundo movidos pelo fascínio das diferenças e das novidades. Este exemplo evidencia o tanto que século após século a história vem derrotando a literatura em nossas vidas. No fantástico relato de Daniel Defoe (1660 – 1731), Robinson Crusoé aspirava um destino superior e por isso era tomado pelo impulso de circular mundo afora. Nada satisfazia à sua vontade ardente, a não ser o anseio irreprimível de ir ao mar. Na obra de Hermann Hesse (1877 – 1962), o vaguear de Knulp fazia parte de uma busca do sentido das relações de amizade e da paixão.
Pensei sobre isso enquanto acompanhava a troca de afeição entre as crianças e Manu Chao. Entre eles não parecia haver fronteiras. Fluía uma interação espontânea de beleza vivida, sem disfarces, em uma imersão cultural cheia de pluralidade, encontros e desencontros. É bom reconfortar o espírito com o que há de bom. O caráter estético se intensifica quando percebemos onde está o sentimento do artista quando ele se apresenta, qual o percurso do seu olhar e quais as ambiências fundadoras da sua criação. Talvez quem estivesse ali fosse Oscar Tramor que, de tanto cruzar fronteiras fazendo contatos com as culturas latinas deixadas para frente, inventou Manu Chao e foi recriado por ele para que em um só pudesse reduzir as distâncias do mundo.
A rebeldia de Manu Chao sugere noção da própria envergadura, com seu conteúdo de verdade e desapego. Ele tem dito aos zineiros que a única barreira instalada em seu caminho é o cuidado que tem para que sua maneira caótica de viver não incomode a quem não merece ser incomodado. Filho de espanhóis evadidos do totalitarismo franquista (1936 – 1975), pai galego e mãe basca, Manu Chao nasceu no exílio, em Paris, e faz da cidade catalã de Barcelona o seu cais. Quem sabe o inconsciente estrangeiro da sua origem não seja a fonte positiva dessa errância e o êxodo uma condição de pertencimento flagrante da sua clandestinidade simbólica. Quando era líder do grupo de roque francês Mano Negra, Manu Chao viajou de barco pela costa latinoamericana, acompanhado por atores e artistas de circo.
Para dar suporte a seu trabalho peregrino ele criou a Rádio Bemba, um misto de coletivo com banda e máquina de samplear contexturas populares aditivadas. Seus CDs e espetáculos são bastante disputados por adolescentes em busca do “déjà dit” da irreverência. Manu Chao é um cronista de viagem que poetiza as “feiras de mentiras” dos padrões sociais dissimulados e acredita na revolução do sujeito desperto. Essa é a crença que deixa transparecer. No meio da meninada parecia dizer tudo isso com gestos e cantigas aparentemente à toa. As crianças interagiram com desembaraço, decerto por se sentirem em uma espontânea vivência de laços afetivos. Manu Chao para elas é acima de tudo o papai de um amiguinho. E para ele, elas são estrelas no universo escolar do filho. Simples assim.