Todos os hóspedes do Hotel Ruanda
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 17 de Setembro de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil
É usual ouvirmos falar da África como se todas as regiões e todas as etnias desse continente tivessem os mesmos contornos sociais, culturais e políticos. Não é bem assim, embora, existam muitos traços comuns na tecedura da vida e na história dramática de um mundo com 30 milhões de quilômetros quadrados, mais de cinqüenta países e com quase a sexta parte da população da Terra. Dos pontos de unidade na diversidade dos povos africanos talvez o mais acentuado seja o jogo de vida ou morte estabelecido há séculos pelas regras do modelo mental colonizador e seus efeitos devastadores e cruéis.
Essa mancha branca ofuscante e enceguecedora é tratada com acurada sensibilidade pelo diretor irlandês Terry George no filme Hotel Ruanda (Espaço Unibanco Dragão do Mar). No conflito entre amor, alheamento, proteção e abandono, em situação de matança desmedida de ruandeses, ele resume o drama maior das várias áfricas. Ruanda é um pequenino país localizado na região dos grandes lagos, na África central. Com relevo bastante acidentado, o país ficou conhecido como “terra das mil colinas”. Um lugar de animais selvagens, de expressiva variedade vegetal e de encantadoras estações naturais, que se tornou destino turístico e zona de inescrupulosos negócios estrangeiros. Cenário que justifica a existência de hotéis de luxo como o Milles Collines, principal locação do filme.
A historiografia européia ocidental sempre culpou os “sanguinários” grupos nativos da África pelo caos nas terras africanas, enquanto os seus mercenários, missionários e militares só queriam “ajudar”. E “ajudaram”, promovendo guerras intertribais e alimentando conspirações entre os clãs das mesmas tribos. As ocupações bélicas e comerciais européias produziram desequilíbrios e afetaram drasticamente a vida tradicional africana. Os métodos de colonização variaram de acordo com a “nacionalidade” do colonizador. As resistências espontâneas ou organizadas também aconteciam de acordo com as características naturais e culturais dos territórios e das gentes invadidas. O certo é que no final do século XIX o continente já estava estruturalmente deformado.
A trama euroafricana tem raízes especificamente na exploração mercenária, na anexação territorial e nas lutas de resistência e emancipação. As potências européias rivalizavam pelo controle de áreas de influência em territórios ocupados pela Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Itália, Portugal e Espanha. No final do Século XIX esses e mais meia dúzia de outros países europeus fizeram uma conferência em Berlim (1884/85) para redesenhar o mapa da África. O chamado “Pacto Colonial” repartiu o continente de fora para dentro, impondo convivência de organização política a tribos rivais e separando em territórios distintos grupos com tradição de boas relações.
O genocídio dos facões, praticado por grupos extremistas apoiados pelos franceses e descrito em Hotel Ruanda, data de 1994, mas observando bem remontam há oito décadas, quando, os alemães, derrotados na Primeira Guerra Mundial (1914 -1918), perdem para os belgas o controle sobre a “terra das mil colinas”. Ao ocupar o território ruandês, a Bélgica procurou tirar vantagem do peso aflitivo da instabilidade, a partir da classificação das diferenças étnicas da população. O filme revela que a segregação patrocinada pelos belgas tomou como base dessemelhanças como o tamanho dos narizes de tutsi e hutu.
O simulacro antropológico belga teve como objetivo provar e estabelecer a hipotética superioridade da minoria tutsi, a fim de produzir uma elite que comandasse o país sob os seus interesses. Nessa empreitada da discórdia, a Bélgica instigou o ressentimento dos hutu – em torno de 80% da população formada predominantemente por agricultores – contra os tutsi, que já ocupavam posições de poder e eram mais voltados para a pecuária. A arma mais eficaz dessa tragédia foi a incitação racista comandada pela Rádio des Milles Collines para os assassinatos coletivos. Até então, tutsi e hutu falavam praticamente a mesma língua, tinham relações religiosas, laços familiares e, principalmente, contavam as mesmas histórias.
Contar as mesmas histórias é um ponto de alto valor nos grandes eixos de afinidade da cultura oral africana, como o respeito religioso pela mãe e o sentido comunitário. A narração de algo do passado significa uma atualização da experiência, uma maneira de reviver o que aconteceu. Valendo-se da linguagem cinematográfica o diretor Terry George consegue esse fenômeno com Hotel Ruanda: vemos o filme como uma metáfora renitente hospedada em todos nós e ainda configurada em compreensões distantes dos nossos quereres mais profundos.
O protagonista de Hotel Ruanda é o gerente. Um executivo de padrão mental “primeiro-mundista” e bom conhecedor dos corredores da natureza humana. Hutu, casado e feliz com a bela tutsi Tatiana (Sphie Okonedo), Paul Rusesabagina (Don Cheadle), tem “bom preparo”, “classe” e destacada habilidade para agradar os exigentes clientes do hotel. Ao se deparar com a degradante situação de desamparo simbolizada pela retirada das tropas de paz da ONU, usou todo o conhecimento relacional, adquirido pela função que exercia, para preservar o hotel e salvar sua família das lâminas dos facões. Subornou a milícia radical hutu com bebidas, dinheiro e jóias, e fez promessa de recompensa a quem protegesse o patrimônio belga do qual era a “autoridade” local.
Paul foi adiando o massacre, mas ficando sem saber o que fazer com o crescente número de pessoas pedindo refúgio no hotel. Relutou até ser desafiado em sua alma por um comandante canadense (Nick Nolte): “Você é inteligente. Poderia ser o dono deste hotel, mas você não passa de um negro. E não é um negro norte-americano, não; é um desprezível negro africano”. Paul muda o semblante ao assumir a sua condição. Tira a gravata e, desarmado, convoca os tutsi alojados no hotel para que cada um ligue aos que os abandonaram: “Ao agradecer, digam adeus, deixando bem claro que vão morrer. Mas digam como se apertassem suas mãos para que eles sintam que os estão largando à morte”. Foi como conseguiram lugar no exílio.