Deu vontade de lembrar
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 04 de Fevereiro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Por muitos anos tive o hábito de apreciar o pôr-do-sol na Ponte Metálica de Iracema. Há sempre uma sensação de agradável diferença ao sentir o crepúsculo naquele lugar. As tábuas do piso deixam circular nesgas de ar que sobem da agitação das ondas vadias mesclando-se à brisa da superfície em uma alegre dança caótica dos ventos. Nesses momentos sublimes não há como dar preferência a um ou outro jogo de cores. Nada se comparava àquela espontaneidade natural prismada entre nuvens, espelhos crespos de água e os encandeados contornos da cidade.
Sempre que podia, estava ali, ao entardecer. Eram momentos muito especiais. Hoje acordei lembrando do último pôr-do-sol que quase não vi na Praia de Iracema. Não era sábado, nem domingo. Provavelmente uma segunda-feira. Talvez terça. Não lembro bem. Só sei que percebi alguém de costas para o pôr-do-sol sentado na borda da Ponte Metálica do Poço da Draga. Como uma pessoa daria as costas para o sol daquele jeito, àquela hora, foi a indagação que me rondou à mente naquele instante e que nunca mais saiu da minha lembrança.
Eu não conseguia ver o rosto da pessoa na outra ponte, pois o contraluz não permitia. Quanto mais tentava observar as suas expressões, mais tinha dúvidas sobre a intenção do estranho, que permanecia imóvel contemplando o que eu nunca soube o quê. Parecia um eclipse humano em meu caminho. Imaginei que ele poderia estar simplesmente preferindo olhar à cidade ao invés do pôr-do-sol. Quem sabe já vivesse cansado de tantos pores-do-sol.
Em um determinado instante a figura se moveu, sugerindo o desejo de focar melhor o que poderia ser um ponto perdido entre as jangadas do Mucuripe. Fiquei curioso para saber o que ele estaria reconhecendo entre as embarcações. Teria alguma recordação de mar? Por que algumas coisas ficam vivas na nossa memória e outras não? No pequeno trecho de mar, realçado por surfistas dispersos, que nos separava, comecei a me conformar que era quase impossível colher detalhes do desejo de um homem sem rosto.
Comecei a pensar na orla invejável da cidade, cheia de bares, restaurantes, hotéis, feira de artesanato e um sem-número de atrações num elástico cenário valorizado por coqueiros, uma arquitetura pujante e gente simpática. Quanto mais eu meditava, mais intrigado ficava. A pessoa só mexia com os cabelos porque era o vento que está fazendo o serviço. Confesso que fiz esforço para me convencer que não tinha nada que me intrometer na vida alheia.
Aquela inquietação supostamente desnecessária já estava atrapalhando a minha apreciação do pôr-do-sol. Teria alguém, como eu, incomodado com a presença daquele indivíduo de aspecto frio e calculista? Corri o olhar por toda a extensão da Ponte Metálica de Iracema, onde eu me encontrava. Pessoas namoravam, andavam por andar, tocavam violão, cantavam, olhavam uma exposição de fotografias no quiosque central. Senti-me aliviado.
O fato de ter ficado um pouco mais tranqüilo não me libertou, contudo, da insistente vontade de cuidar do olhar da pessoa que sentou de costas para o sol naquele final de tarde. Recordo que inventei uma série de opções para justificar a atitude do personagem misterioso. Deveria ser algum turista deslumbrado com a cidade. Todo cenário novo é um imã infalível, uma espécie de passado que a gente não viu. Ele poderia estar lendo a palma da mão de Fortaleza, as linhas da vida da cidade nos levando para um choque entre a opulência do dinheiro sujo e a oferta de ninfetas para o sexo barato.
Bati na madeira, toc! toc! Fechei os olhos tentando iluminar-me por dentro. Roguei mentalmente que não fosse verdade o que eu estava imaginando que imaginava aquele sujeito a olhar em minha direção sem que eu soubesse o que ele realmente via. Cheguei a me consolar, fantasiando a leitura dos seus pensamentos. Ora, ora, ele poderia muito bem estar vivendo instantes de clarividência, de sonho com uma cidade feliz para morar, passear e, por fim, viver.
Iludido por esses desejos de felicidade comecei uma animada festa de devaneios em meus pensamentos. Cheguei a acreditar que o redesenho dos nossos preconceitos coloniais fincados em nosso imaginário aconteceria antes do avanço da especulação desenfreada que invadiu o mar, as dunas, o mangue e que oprimiu as ruas em um arremedo de modernidade. Enquanto eu sonhava, disparos simultâneos de realidade atingiram minha esperança. Não conseguia entender de que vale uma praia, por mais bela que seja, sem a música que a revela sonora, sem a pintura que reinterpreta seus traços, sem culinária, sem humor, sem poesia, sem alma.
Foi muito surpreendente o que essa tribulação de sentimentos provocou em mim naquele dia. Levantei-me e resolvi interferir no olhar do outro. Gritei. Apelei para a pantomima. Nada. A figura da Ponte do Poço da Draga não se mexia. Para onde estaria viajando o seu olhar? O que estariam vendo os seus olhos de lusco-fusco? Acenei, clamei, até cansar os braços, até enrouquecer, até sentar novamente com a cabeça sobre os joelhos. Dei um tempo. Recobrei o fôlego e corri a visão em semicírculo pela cidade. As luzes acesas pareciam querer me encantar… e encantavam. Muitas pessoas já tinham ido embora, inclusive a que estava na outra ponte e que tanto me inquietara. Naquele dia perdi o pôr-do-sol. Faz tempo. Nunca mais voltei a andar pela Praia de Iracema. Acho que estou com saudade.