Extrigix e a poção da arte
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quarta-feira, 22 de Fevereiro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Um dos mais renomados anti-heróis do mundo dos quadrinhos é o destemido Asterix, de René Goscinny e Albert Uderzo. Sua aldeia é o símbolo da resistência francesa ao domínio do império romano, mesmo quando a região que hoje é a França ainda era conhecida apenas como Gália. O pequeno gaulês enfrenta qualquer situação em nome da liberdade do seu lugar. Conta, para tanto, com uma poção mágica produzida com muito segredo pelo druida Panoramix.
Essa imagem de Asterix me veio à mente quando mais uma vez parei para pensar sobre a ameaça que o Metrofor causa ao Mini-museu Firmeza no Mondubim. Na minha cabeça o trem metropolitano de Fortaleza surge como uma legião romana disposta a soterrar o pequeno vilarejo onde o artista plástico Estrigas vive com a amada Nice a expressão mais pura da arte em harmonia com a natureza.
Mais do que pela semelhança franzina, a associação do personagem das histórias em quadrinhos com o pintor revela-se no espírito resistente que ambos apresentam em suas guerras contra forças implacáveis e supostamente indestrutíveis. Devo ter sido influenciado também pelo fato de ter visto recentemente o filme “Asterix e os Vikings” (Stefan Fjeldmark e Jesper Moller). Neste filme há um momento em que o dia nasce cheio de fascínio bucólico e tranqüilidade na aldeia gaulesa. Enquanto a cena se abre em sua calmaria pictórica o Artur, meu filho de cinco anos, sussurra para mim: “Pai, toda vez que amanhece é bem cedo, não é?”. Também falando baixinho, como que para não acordar o vilarejo, respondi que sim.
Seguimos vendo o filme, mas a minha lembrança me transportou vagamente para o sítio do Estrigas e da Nice. As mangueiras, o baobá, a sombra do sapotizeiro e os florais foram acolhendo a minha memória e me acompanhando pelas salas cheias das obras de arte que transformaram a residência do casal de artistas em museu. Estava lá o nosso Estrigix com paleta e pincel desviando o curso dos trilhos para não ser atropelado pelo metrô que vai chegar. A vantagem do criador é que ele pode mudar a ordem do mundo com um simples toque de cores e traços.
A arte tem sido a poção mágica de Estrigix e Nicix a protegê-los da expansão desenfreada da urbanidade. A cidade chegou ao sítio. É uma realidade, não uma tela. O risco do Mini-museu Firmeza desaparecer sob uma alça de viaduto é o risco de perdermos a grandeza de um espaço reflexivo, contemplativo e de experimentação da vida cotidiana como fonte de inspiração. Volto a me concentrar no filme e percebo a semelhança da ficção e da realidade nessa luta entre duas convicções humanas. Abstraio-me de ambos e penso na derrota do “era uma vez” diante do presentismo.
No final da década de 1980, o pensador estadunidense Francis Fukuyama, professor de economia política internacional da Universidade Johns Hopkins, de Baltimore, decretou o fim da história. Diz que lançou sua tese em nome da inexorável modernização do planeta. Quando vejo pequenos lugares, comunidades distantes, povos que acreditam em alternativas menos extravagantes do que perder a própria história, sinto a força ancestral do Asterix projetada no comportamento resistente de Estrigix.
Estrigix luta com a poção mágica da arte no campo minado da construção social e retórica da verdade moderna. Chama a atenção ao que realmente interessa. Não que uma obra de interesse coletivo como o Metrofor não seja importante. O metrô de Fortaleza já está demasiadamente atrasado. A cidade precisa dele urgentemente. Mas não tem sentido conceber um processo de crescimento urbano darwinianista, no qual cada espécie de construção vai-se fazendo imperceptivelmente na que vai substituí-la. Temos que ter consciência do que alteramos e o Mini-museu Firmeza precisa ser discutido como um ponto que confere significado à futura estação de metrô do Mondubim.
Os construtos da urbanidade acelerada e individualista precisam entender que Estrigix supera o viaduto que invade a sua aldeia. Pintando ele tem alterado o curso do trem, tornando a cidade mais suportável. A simbologia do trem, arcaico ou moderno, honra qualquer paisagem. Entretanto, desprezar os princípios que levam em conta a riqueza natural e cultural da coletividade é um atestado de empobrecimento social. Nas últimas décadas, muita gente tem podido constatar a importância do Mini-museu Firmeza para a nossa cidade. Como na velha Gália, por lá têm passado os nossos Veteranix, Obelix, Automatix, Chatotorix, Panoramix e até um Ideiafix, o saudoso cãozinho sobrevivente de um atropelamento, que por ter perdido um olho, ganhou o nome de Camões.