Responsabilidade moral
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 04 de Março de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil
De tempos em tempos sinto a presença de Nelson Mandela em meus pensamentos espontâneos. Percebo a chegada dessa imagem de um líder íntegro e comprometido com a grandeza da política como reforço a minha crença de que nem tudo está perdido. Por esses dias de carnaval lembrei que se passaram dezesseis anos que ele saiu da prisão para intensificar seu trabalho de interlocutor nas negociações que deram fim ao regime de segregação racial até então imposto pela minoria branca na África do Sul. Com um raro sorriso honesto no mundo político, Mandela sempre me impressionou pela maneira desprendida com que deixou claro que não há milagre na luta pela superação das desigualdades.
Em fevereiro de 1990, quando a forte pressão popular obrigou o governo sul-africano a colocá-lo em liberdade, a presença física da sua figura livre foi tão impactante que os próprios encarregados do cordão de isolamento correram para se aproximar dele. Preso em 1962, por integrar um grupo guerrilheiro chamado “Lança da Nação”, foi condenado à prisão perpétua, mas 27 anos depois o regime racista não suportou os efeitos da sua força carismática, que liderava do cárcere as mudanças no país. A estratégia liderada por Nelson Mandela tomou como base a escolha das cinco leis consideradas mais injustas para serem desobedecidas pela maioria negra.
O regime do apartheid (separação, no dialeto holandês afrikaans) foi instaurado em 1948 e reforçado em 1953 com a promulgação de um ato institucional que definiu todo um código de restrições do governo branco (15% da população) a negros (72%), indianos (3%) e mestiços (10%). As praias, os ônibus, os banheiros públicos, as lojas, enfim, todo o país encheu-se de placas discriminatórias. Quase tudo era “White only” (só para brancos) e quase nada para “blacks, coloureds & asians” (negros, mestiços e asiáticos). Se não tinham acesso a hospitais nem a escolas, os não-brancos ainda foram submetidos a áreas restritas. Transitar em uma área reservada a brancos era considerado invasão, por isso só podia ocorrer com prévia autorização policial. Romper com tudo isso passou a ser a grande causa do Congresso Nacional Africano (CNA), liderado por Mandela.
Tomei conhecimento vagamente do que acontecia na África do Sul quando vim do interior morar em Fortaleza na segunda metade dos anos 1970. Recordo que li alguma coisa sobre o assunto, por ocasião dos quinze anos da prisão de Mandela, em um panfleto que circulou discretamente pela Escola Técnica Federal (hoje Cefet), onde eu estudava. Fiquei impressionado com a liderança iluminada daquele homem encarcerado e ao mesmo tempo tão livre no alcance da sua crença mobilizadora. Escrevi um poema para ele, que depois foi musicado por Bernardo Neto e gravado em um CD que fiz dez anos depois com a cantora maranhense Anna Torres. Se Mandela estava chegando a mim com tanta emoção, como poderia estar preso na ilha Robben? Intitulei os versos de “Volátil”, numa homenagem ao que pode voar além do corpo e das paredes de qualquer prisão: “Um dia meu prisioneiro fugiu / ele rompeu seus muros e voou pelo mar / pluma de gaivota / zanzou pelo mar / nuvem vã sem rota / Muitos disseram: ele já era livre / pois livre é a alma é o corpo de quem ousa amar / solto no ar / pluma de gaivota / vento de mar / nuvem vã sem rota”.
No início dos anos 1990, a convite de uns amigos do Ibase, quando o Betinho ainda era vivo, pude ver Nelson Mandela de perto no Rio de Janeiro. Levei para ele o LP “Estação do trem imaginário”, do Calé Alencar, que tem uma belíssima música feita sobre poema de Francisco Carvalho em homenagem ao estadista sul-africano. Logo depois Mandela é eleito presidente da África do Sul (1994 – 1999) e convoca inclusive os compatriotas brancos a se unirem aos negros na formação de um novo país. Em seu discurso de posse revelou com humildade altiva o quanto compreende que os grandes líderes nunca estão sozinhos: “Nascemos para manifestar a glória do universo que está dentro de nós. E conforme deixamos nossa própria luz brilhar, inconscientemente damos às outras pessoas permissão para que façam o mesmo”.
Em 1996, o presidente Nelson Mandela convoca a nação a fazer uma nova constituição para a África do Sul, que entra em vigor em 1997, com as bases para a correção das divisões do passado e plataforma para o estabelecimento de uma sociedade democrática. Ao discursar no parlamento britânico, declarou que se os ingleses estivessem pensando que a África do Sul iria cair na armadilha de promover a violência como forma de livrar-se das marcas da apartação, estavam enganados: “A nossa vingança será o estabelecimento da paz”. Mandela é um libertador que soube substituir ressentimentos pela paciência nas negociações que verdadeiramente transformam. A habilidade com que conduziu o fim do racismo institucional em seu país evitou muito derramamento de sangue desnecessário.
O fim do apartheid, a promulgação de uma nova constituição mais justa e a eleição do sucessor, Thabo Mbeki, com 70% de aprovação nas urnas, são resultantes do papel político histórico de Nelson Mandela. A África do Sul segue, porém, com graves problemas a resolver. O discurso de Mbeki demonstra que há ciência da missão: “Podemos não estar uns contra os outros, como no tempo do apartheid, mas também ainda não estamos uns com os outros”. Mais do que essa falta de entendimento comum necessário à implementação de políticas adequadas ao desenvolvimento, o país vive o drama contemporâneo do aumento da fissura entre ricos e pobres, causada pelos efeitos colaterais da financeirização do mundo, que é o apartheid econômico. Só para se ter uma idéia, a minoria de colonizadores descendentes de holandeses, franceses, alemães e ingleses, ainda possui cerca de metade das terras férteis do país. Entre a luta para socializar o usufruto das suas próprias minas de diamante, do ecoturismo e da criação de avestruz, a África do Sul enfrenta a indesejável estatística de ter um dos maiores contingentes de soropositivos do mundo.
Diante de problemas com tamanha gravidade, os sul-africanos ainda contam com o exemplo de responsabilidade moral do sempre renovado Nelson Mandela em seus quase noventa anos. O preto, o verde e o amarelo da bandeira do CNA parecem tremular vivos no coração sonhador dessa gente que por toda a vida foi refugiada interna de seu próprio país. Mandela está firme na luta contra a Aids e sabe como ninguém que nesse combate não há soluções mágicas. Enquanto Madiba, apelido pelo qual essa grande personalidade da história mundial é chamada em carinho tribal, só tiver esperanças a dar e a deixar ao seu povo, a Azânia, nome da África do Sul nas línguas bantu, deve alimentar expectativas de sair do poço escorregadio da apartação econômica. Como se vê, a situação já foi bem pior.