Rita Lee e a reinvenção do casamento
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 28 de Outubro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O casamento, na sua forma tradicional, é uma instituição fadada ao insucesso. É um contrato normalmente assinado no momento em que as pessoas estão movidas por intensa paixão, impetuosa atração sexual ou por fortes circunstâncias de velados interesses econômicos, profissionais e sociais. Com o tempo, a conquista fica rasa, insossa, e encarar o outro cotidianamente começa a ser insuportável. Todo detalhe das diferenças entre os parceiros torna-se grande obstáculo à expectativa de companheirismo, amizade, afeto e erotismo idealizados no matrimônio.
A infelicidade no casamento ocorre principalmente pela perda de objetivos e de identidade, resultantes do sentido de posse por parte dos que esperam da união de caras-metades a finalidade da vida. O infortúnio dessas relações se aprofunda nos dias atuais com o choque entre ambição e capacidade de consumo. A questão financeira é o novo tabu dos casais. Mais do que as regras de vinculação contratual de sexo e prazer. Existe uma carga acumulada de questões de gênero mal resolvidas, que envolve ressentimentos atávicos e emoções embaraçadas, geradores de conflitos intermináveis.
Nas últimas três décadas, tempo das bodas de Rita Lee e Roberto de Carvalho, migramos de hipocrisia; saímos da tentação de colocar a culpa de tudo que é ruim nos outros para a instauração do senso de busca individualizada. Agora já se assume a culpa pelo ódio do amor. O que ainda não se consegue fazer é descobrir que culpa é essa, se ela existe mesmo e para que serve. Esse é o vácuo que, no casamento, faz um contraponto entre duas perspectivas: de um lado, a dolorida perda de parte da individualidade; do outro, um encontro de rumos comum e prazeroso. O problema é que continuamos gastando mais tempo e energia esperando ou instigando o outro a nos amar do que amando.
A longevidade da relação do casal Lee/Carvalho passa pelo sábio desapego aos pequenos detalhes incrustados em dogmas religiosos e preceitos jurídicos. Na música Atlântida, eles declaram que o mundo é dos que sonham que toda lenda é pura verdade. Parecem viver essa concepção de vida. E nela, não cabem as formas de um contrato que agride a natureza humana e que desconstrói as pulsões do instinto para se prestar a ser algo limitado a regulamentação das necessidades sexuais, econômicas e reprodutivas, atrofiando a sexualidade e as relações sociais e culturais dos indivíduos.
A reinvenção do casamento em Rita Lee se dá pela grandeza, pela plenitude, pela atenção ao que o outro busca. Ela é uma estrela da música, uma artista multigeracional e uma personalidade ímpar, mas nem por isso se sente maior do que o amor que tem por Roberto de Carvalho. Ele é um compositor e instrumentista de música imagética, que segue sua própria trilha, sem disputar com ela essa coisa de popularidade, sem querer ser o que ela é, sem comprometer o seu amor no jogo de brilhos. Essa incrível separação do trato de si mesmo, somada ao elemento comum da música, talvez seja um dos grandes segredos da permanência de união entre eles.
Os casais precisam existir em suas individualidades e em pontos comuns. Não dá para funcionar apenas com cada um na sua e é impraticável se os dois procuram se fundir para ser um só. Chegar a esse ponto de equilíbrio que Rita e Roberto chegaram não é nada fácil. Mas também não é bicho de sete cabeças, quando a relação nasce de alguma cumplicidade honesta, como a deles nasceu. O que pega na maioria dos casamentos que não dão certo é que a base da relação está fora do eixo do amor. E o eixo do amor é a sensação de co-autoria na construção da felicidade do outro.
O casamento em si, não difere das demais instituições inventadas para organizar a vida em sociedade. Tem casamento com amor de mercado, quando o interesse da união vem de sedução econômica; e tem casamento com amor institucional, quando o interesse da união vem do desejo de ascensão social. São legitimações religiosas e civis que na verdade se mantém por força de dependências. Isso acontece comumente quando a libido é comprada nas prateleiras do amor de mercado ou quando a representação do êxito é adquirida a custos de elevação de padrão social.
O porto seguro do casamento de Rita Lee e Roberto de Carvalho é um abstrato lírico em planos de beleza, espiritualidade e de prazer, onde as sensações têm mais importância do que as definições. Não se prende a reprodução de modelos nem a configurações específicas. Seu tema é a vida e esta é tocada e cantada no ato de viver. No meio artístico uma união tão duradoura é caso raro. Para a cantora e para o músico, apenas um “caso sério”. Ao escolherem a simplicidade requintada de um amor sem regras, eles não caíram na besteira de escancarar a intimidade em nome dos fãs. Deixaram vazar pequenas imagens com exemplos de uma cena maior, como os chamados “thumbnails” das páginas de internet, mas sem entregar a parte do cenário que é só deles.
As Bodas de Pérolas da maior referência da nossa mpb-pop oferecem novos parâmetros ao desgastado e combalido casamento. Sinalizam para a existência de muitos outros jeitos de organizar uniões duradouras. O casamento é uma das formas de criar nodos na rede de relações sociais e culturais. Entretanto, quando assumido em suas bases tradicionais, ao invés de libertar, tende a engessar os indivíduos. Está provado que o sentido de posse, pregado equivocadamente como um atributo do amor, desmancha qualquer prazer. O próprio ciúme, quando ativado por possessão e desconfiança das mentes doentias, torna-se corrosivo e intolerável. Diferente do ciúme sadio, nascido do zelo, crescido no afeto e conservado pela vaidade de amar alguém.
O “caso sério” da dupla Lee/Carvalho é sinônimo de casamento aberto. É ainda uma pista para a dança do respeito entre todos os tipos de apaixonados. A evolução dos interesses institucionais e mercadológicos do amor também vem se atualizando para não perder a boquinha nessa seara sempre tão fértil. A pregação de que consumir dignifica o ser humano, trancou as portas da consciência nas máximas da “felicidade agora” e do “mundo sem fronteiras”, que coisificam as pessoas e as relações. Para os jovens, por exemplo, o sexo foi liberado mais por razões econômicas do que por resgate aos instintos primitivos da humanidade. Antes, para fazer sexo era preciso casar e casar muito novinho passou a atrapalhar a carreira, o profissionalismo precoce, as exigências competitivas do fundamentalismo de mercado. Merecemos motivos melhores para amar, traquinar, casar, o que for… com que nome for.