O céu de Zoe, Ana Paula e Suely
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 25 de Novembro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Zoe, Ana Paula e Suely são mulheres que criaram um método comum de afirmação, na tentativa de tornar suportáveis as circunstâncias em que vivem. O que diferencia uma da outra é a época, o lugar, a intensidade com que encaram a rifa de si mesmas e, evidentemente, alguns traços distintos de personalidade ante o jeito de notarem e reagirem à realidade opressiva. Por trás da atitude de sortear o próprio corpo existe um anseio feminino comum traduzido na busca por uma experiência concreta de individualidade. Algo que possa converter restrição em licença de transgressão para o rompimento com o que as sufoca. As três expressam vontade de fazer alguma coisa, embora não saibam muito bem o que, nem como.
Suely, a protagonista do filme de Karïm, não tem senso utópico. É uma figura dilacerada pelo desamparo afetivo e social a que está submetida. O fato de querer deixar o lugar onde vive não lhe impulsiona à idealização de outro mundo. Essa história começa com seu retorno, acompanhada do filho pequeno, de São Paulo para o interior do Ceará, onde passa a esperar o marido que fica de vir em seguida e nunca aparece. Ela perde o sentido de sonho ao ver frustrado o que seria o seu último desejo, que era montar um negócio informal de gravação de CDs e DVDs junto com a família e o marido, na cidade de Iguatu, a 380 km de Fortaleza, onde foram feitas as locações. Os movimentos niilistas da personagem têm seus contrastes emocionais realçados com beleza pela plasticidade da fotografia de Walter Carvalho, sob a espetacular luz do sertão.
O roteiro parte da contextualização do desamparo, dá uma virada com a atração da rifa e deixa o final entregue ao simbolismo da fita asfáltica de uma longa estrada. Dito assim, parece algo sem novidades. Mas, não, “O Céu de Suely” tem um sofisticado distanciamento na revelação de um cotidiano dramático. A narrativa da obra de Karim segue um curso oposto ao do cineasta espanhol Pedro Amodóvar, que transforma cenas banais em arte pela sucessão de episódios tensos. A implosão emotiva de Suely, em uma atmosfera social que sufoca o seu ser, é mostrada em planos abertos, com poucos cortes, entregues à capacidade de observação e de escolha do espectador. Embora simplificada em sua deliberada visualidade, a trama encorpa intimidade quando a câmara se aproxima do corpo e salienta as poucas falas de Suely. A atriz Hermila Guedes faz muito bem o difícil papel de Suely. O papel de uma mulher constrangida, contrariada, entediada, uma mulher que engole a realidade como uma criança que é forçada a engolir o choro.
O filme de Karim, 40 anos, tem como âncora a história de uma moça de Juazeiro do Padre Cícero, que fez um sorteio de si mesma e teve que deixar a cidade pelas confusões que causou. Está tudo contado no cordel de Abraão Batista, 71 anos, intitulado “Ana Paula, a jovem que se rifou para ir morar em São Paulo”, com xilogravura do próprio autor. Ele conta que o acontecido se deu no cariri entre o final de agosto e o começo de setembro de 1991. Como no filme “O Céu de Suely”, Batista começa contextualizando: “A mulher, por muito tempo / como escrava vivia / em todos pontos, coitada / chorando, obedecia / porém, agora, a mulher / convive com a ousadia”. Explica que ela é bonita, jovem, separada do marido e que, de tanto ser incompreendida, se meteu em enrascada ao rifar o próprio corpo.
Abraão Batista faz um juízo moral do comportamento de Ana Paula, enquanto Karim opta por uma angulação estética. Enquanto na literatura de cordel o fato é que a moça “Botou o corpo na rifa / pra uma noite no motel”, no cinema ela promete “uma noite no paraíso”. Autor e diretor trafegam, entretanto, pelas falações geradas na cidade por conta da rifa que corre pela loteria estadual. Há uma diferença de composição no desfecho dos dois casos: no filme, Suely vai sem qualquer apetite para a cama com o ganhador; na alegoria do cordel, Ana Paula é poupada dessa cena porque o mecânico que foi sorteado ainda estava devendo o ponto da rifa e não teve direito ao prêmio. Com o dinheiro dos bilhetes vendidos, as duas vão embora no final: Suely, para o lugar mais distante que pôde comprar a passagem, que foi Porto Alegre; Ana Paula, foi para São Paulo. Finais inconclusos que Abraão Batista sintetiza assim: “O resultado dessa história / aqui não passo o final / pois, Ana Paula viajou / não sei dela o ideal”.
A atitude de uma mulher se rifar foi enfocada em 1962 em um dos episódios da comédia “Boccaccio’70” realizada por quatro mestres do cinema italiano: Federico Fellini, Mário Monicelli, Luchino Visconti e Vittorio De Sica. Coube a De Sica (1901 – 1974) filmar “A rifa”, com Sophia Loren. A personagem tem o nome de Zoe. Trabalha numa barraca de tiro ao alvo em um misto de parque de diversões com feira de animais, na pequena comunidade de Lugo, em momentos degradantes da dura realidade italiana do pós-guerra. É assediada constantemente pelos homens que a chamam de apetitosa, boazuda e sonham com ela. Mas Zoe quer ser uma mulher independente e aceita a provocação de um amigo para sortear uma noite de sexo. No final das contas, ganha o sacristão, que era virgem. Mesmo sem ter conseguido a proeza aspirada por tantos, ele pede autorização a ela para poder espalhar o comentário de que foi muito bom. Ela consente e o pacato cidadão ganha a reputação de herói.
O céu de Zoe tem ritmo de cha-cha-cha e esboça um novo horizonte da independência feminina. O céu de Ana Paula descortina-se com nuvens passageiras de jogo de azar. O céu de Suely é a própria amplidão, uma hipérbole do abandono. Ao rifarem-se, elas intuem que a moeda do sexo, da beleza e do prazer é um tipo de capital ao qual podem recorrer na adversidade. Assim, cada qual ultrapassa, com estilo próprio, a barreira velada da vergonha para exercer, mesmo de forma efêmera, o poder explícito da sedução. Zoe, investida de comicidade; Ana Paula, entornada no trágico; e Suley, imersa no existencialismo, não se rifaram em vão. Suas histórias revelam a necessidade de ruptura com algo mais profundo a ser desvendado nas relações humanas. O céu de Zoe, Ana Paula e Suely é uma paródia da condição feminina.