Mandu Ladino e a saga Tremembé
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 09 de Dezembro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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As primeiras percepções que temos dos chamados índios nasceram com a própria vontade do colonizador de escravizá-los. Desse confronto de antepassados, herdamos uma sensação de que os povos nativos apenas fazem parte da paisagem brasileira, como os papagaios e os macacos. Ainda hoje observamos o quanto as tribos remanescentes são apresentadas como se fossem agrupamentos de mico-leão-dourado e ararinhas azuis. A persistência dessa abstração astuciosa facilita a continuidade da grilagem e da invasão de terras por parte dos novos colonizadores. Desde que prometam “replantar aldeias”, como anunciam fazer reflorestamentos, eles sentem-se autorizados a mexer com os nativos, sem levar em consideração os seus parâmetros econômicos, sociais e culturais.

O livro “Mandu Ladino”, de Anfrísio Neto, surge como uma incisiva fonte de referência na inquietante ausência de memória não-oficial sobre a vida nativa brasileira. Chega para ocupar um lugar de destaque na estante das obras provocadoras de inflexão no modo de narrar a fundação do País. O autor dispensa estereótipos e realça sem sentimentalismos os elementos que podem conferir dignidade e grandeza ao povo Tremembé. Ressalta o caráter humano da gente original da nossa terra e desenvolve com maestria uma trama atraente e boa de ler. Mandu é o centro de gravidade nessa rapsódia. Sua força narrativa soma-se à de sua irmã Aluhy, mas não despreza a figura dos fazendeiros e exterminadores de índios.

Mandu é um garoto Tremembé que sobrevive a um ataque de fazendeiros à sua aldeia e passa a ser criado em um aldeamento dos padres capuchinhos do Cariri paraibano. Por ser altivo e desembaraçado, ganha o apelido de Ladino, em um misto de graça e de censura por parte dos missionários. Quando fica rapaz, mete-se em encrenca e foge em busca do seu povo. Atravessa toda a região do Cariri e os Inahmuns, cruza a Serra da Ibiapaba e descobre que da sua gente só resta a irmã Aluhy. Ela vive em uma fazenda com outras nativas domesticadas “pra rede e fogão”. Nesse retorno, Mandu é feito escravo-vaqueiro, consegue escapar e torna-se líder dos Aranis, com os quais promove vários ataques e contra-ataques a fazendeiros destruidores de malocas. Para os colonizadores, vira um assassino periculoso; para os nativos, transforma-se um herói destemido, a lutar com bravura contra os invasores das suas terras e escravizadores de sua gente.

Um dos pontos bem resolvidos no livro de Anfrísio Neto é o tratamento natural dado a Mandu como um herói nativo. O protagonista não precisa ser dourado para aparecer como um vulto expressivo dos povos originais do Brasil. É a memória reconstituída e romanceada em situação de respeito aos vencidos. O cenário que abriga a história de Mandu une Piauí, Ceará, Paraíba e Maranhão na horizontalidade de sua sorte. Tem foco nas terras do entrono do rio Longá e nas ribeiras do rio Poty, onde se cruzavam as correntes migratórias procedentes da ilha de São Luís do Maranhão e do interior do País, na figura dos bandeirantes paulistas. Ponto de encontro de bandos de vaqueiros e índios catequizados, que ocupavam terras dos nativos para a criação de gado. Essa história acontece nos fins do século XVII e início do século XVIII.

A obra de Anfrísio não se limita a fronteiras históricas e geográficas. Com narrativa tecida pelo curso das evidências que a história oficial fez questão de apagar, o livro trata da condição humana em choque de culturas. Interessa por suas revelações, pela trama original e pela leitura envolvente que oferece. É uma prova inequívoca de que cabe em nossa literatura mestiça o tratamento respeitoso ao elemento nativo. Não pelo caminho perverso da caridade histórica, que mantém a presença indígena na categoria de figurante, mas pelas vias da valorização das qualidades dos guerreiros derrotados, derrubando uma fronteira cultural que omite parte significativa do que somos e, com isso, nos diminui enquanto nação.

O primeiro grande passo dado no sentido de descolar o nativo brasileiro do meio ambiente foi dado pelo escritor cearense José de Alencar (1829 – 1877). Obras como “Iracema” e “O Guarani” fazem parte desse louvável esforço. Entretanto, mesmo indo aos limites do universo de compreensão da sua época, Alencar não conseguiu romper o cerco simbólico do modelo mental do colonizador, que nunca abriu mão da subserviência indígena. Moacir, o “guerreiro branco” é o verdadeiro protagonista do livro “Iracema”. É por ele que a índia dos lábios de mel e cabelos da cor da asa da graúna trai os segredos de Tupã. É também por ele que Poti nega à própria cultura. Em “O Guarani”, o amor ingênuo de Peri por Ceci, filha de um fidalgo branco, determina que nos conflitos o personagem nativo sempre se coloque ao lado da família portuguesa.

Em “Mandu Ladino”, Anfrísio afasta-se do Romantismo europeu adaptado para o Brasil no tempo de Alencar e dá um novo passo ao revolver com estilo a história soterrada de um herói Tremembé. Ele maneja as palavras com desenvoltura e articula a narrativa com apelos emocionais contundentes. Seus personagens são caracterizados como figuras intensas de um Brasil profundo, pouco compreendido em sua etiologia. Seu romance é inovador ao permitir um raciocínio na anti-trilha da versão colonial tradicionalizada em nosso aprendizado comum. Não tem a exuberância lingüística de Guimarães Rosa (1908 – 1967) em “Grande Sertão: Veredas”, embora retrabalhe com esmero termos tupi enriquecedores da sua prosa.

A relação entre a formação de médico-psiquiatra de Anfrísio Neto aparece no texto especialmente nas descrições psicológicas de Aluhy. A irmã de Mandu envolve-se com o filho do fazendeiro da forma que hoje a psicologia chama de “Síndrome de Estocolmo”, quando a vítima desenvolve um estado de paixão pelo seqüestrador. O livro retrata uma parte oculta da alma brasileira. É um trabalho que harmoniza história e ficção. Em sua trajetória pela liberdade, traduzida na busca incessante de si mesmo, Mandu leva o leitor a caminhar por recantos curiosos da nossa civilização mestiça. Obras como “Mandu Ladino” nos animam a retirar do silêncio e do vazio as referências aos nossos antepassados para que saibamos o quão grandiosa é a nossa história e o quanto foi duro chegar até aqui.

Serviço: “Mandu Ladino”. Romance histórico de Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco. Independente, 488 p. Teresina (PI), 2006. Preço de referência: R$ 30,00. Pode ser adquirido por meio da Livraria Universitária (86) 3234-1213.