Ao bom Jesus dos navegantes
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 18 de Janeiro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Depois de três dias de animada festa popular, moradores e visitantes da cidade de Penedo, localizada no extremo sul de Alagoas, encerram as festividades do Santo protetor dos navegantes com uma indescritível procissão fluvial no rio São Francisco. Em um catamarã da agência Opara, acolhido por simpáticos e alegres penedenses, acompanhei no domingo passado, dia 14, o séqüito de mais de cinqüenta embarcações pelo Velho Chico, como é tratado carinhosamente o rio São Francisco. Opara, salvo controvérsia dos cronistas do lugar, era o nome dado pelos caetés ao São Francisco e queria dizer “um rio tão grande quanto o mar”. Essas e outras discussões foram temperadas ao longo do cortejo pelo tradicional prato de jacaré ensopado, com leite de coco, azeite de dendê, pimenta e uma santa e fina farinha branca.

Penedo é uma cidade do século XVI, com a particularidade muito especial de não ser um lugar velho, de ter um comércio razoável e perfil urbano atual. As pessoas, a vida do lugar é presente, embora com uma visível satisfação de ter uma história com a qual podem contar para viver. Como se costuma dizer desses lugares cheios de referências coloniais arquitetônicas, Penedo é um cartão-postal. O casario, os sobrados, as construções seculares são percebidos pela população como relíquia e não como velharia. O sentimento de habitar um relicário deixa os penedenses motivados para tocar o cotidiano como ele se apresenta nos dias de hoje.

Um rochedo que margeia o rio deu o nome à cidade, fundada oficialmente em 1560. O lugar ainda guarda alguns vestígios do forte erguido por Maurício de Nassau, nos anos de disputa entre holandeses e portugueses pelas terras nordestinas. Do ponto de vista arquitetônico, a cidade exibe monumentos com influência barroca, rococó e neoclássica. Suas igrejas chegam a sugerir lembranças da mineira Ouro Preto. As belas casas construídas na passagem do século XIX para o século XX têm muito em comum com as do bairro Jacarecanga em Fortaleza. A diferença é que muitas delas estão bem preservadas e são habitadas normalmente por moradores que se orgulham do legado que receberam.

Nota-se em Penedo a presença de grupos de pessoas que se movem no sentido de organizar pequenos acervos que dinamizem a memória da cidade. É o caso da Casa do Penedo, que além do bom espaço de pesquisa que dispõe está na iminência de montar o Instituto do Homem do São Francisco, em um chalé de 1910, todo embelezado por elementos ornamentais do classicismo. Há também o Paço Imperial, que guarda peças da época em que hospedou Dom Pedro II em sua visita ao rio São Francisco. A igreja de Nossa Senhora das Correntes é outro ponto de destaque em Penedo. Tem altares folheados a ouro, com passagens secretas para a fuga de escravos. Essa igreja tem o charme dos monumentos que possuem enigmas: não se sabe se o nome de Nossa Senhora das Correntes diz respeito aos grilhões que aprisionavam os escravos ou se é uma alusão à correnteza do Velho Chico que passa à sua porta celebrando a vida ao lugar.

Da terra ou de dentro do rio, de onde se observa Penedo é possível sentir sua força cativante. O roteiro sentimental dessa cidade foi escrito pelo professor Francisco A. Sales e publicado no livro “Arruando para o Forte” (Fundação Casa do Penedo, 2003, R$ 35,00). Trata-se de uma obra de crônicas poéticas arrebatadoras, nas quais o cotidiano histórico é oferecido com o olhar local e afetivo de quem vivenciou transformações modeladoras na forma de acontecer, mas não do espírito de tocar a vida do lugar. “No Penedo vive-se a eternidade, viajante”, sintetiza o autor.

Por ocasião da procissão fluvial do Bom Jesus dos Navegantes observei a aplicação dessa definição de Francisco A. Sales ao conhecer o autor da música “Penedo Cidade Bonita”, uma espécie de aquarela penedense, cantada pelo coral municipal “Vozes de Penedo”. Kid Dão, o compositor, estava no nosso catamarã tocando cavaquinho e cantando com o seu grupo, como se dissesse que a vida está sempre entre uma e outra coisa, nunca no princípio ou no fim. É uma figura interessante, um músico popular que, como o assum preto de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, faz da sua insuficiência visual uma luz canora de amor à sua gente e à sua terra natal.

A mescla do tempo e das culturas que floresceram em Penedo pelo vigor do rio São Francisco produziu o espírito de grandeza dessa gente que aprendeu a valorizar o trabalho e a fé na construção da sua narrativa histórica. Mesmo com toda a invasão das bugigangas coreanas, chinesas e paraguaias que empestam as feiras populares brasileiras, a festa do Bom Jesus dos Navegantes ainda é pontuada por manifestações culturais que vão das bandas de pífanos aos grupos de capoeira. O teatro Sete de Setembro tem quatrocentos lugares e é bem arrumadinho. Entretanto é lamentável que o festival de cinema de Penedo não exista mais e que a sala de exibição de um mil lugares, que ficava na parte térrea do hotel São Francisco, tenha dado lugar a uma dessas igrejas comerciais que se multiplicam pelo país.

Para a procissão do Bom Jesus dos Navegantes a cidade desce aos fogos para a beira do rio, onde o cortejo passa a contar com dezenas de barcos que buzinam e agitam fitas coloridas em reverência ao protetor dos navegantes. A imagem do Santo é colocada na balsa, acompanhada por religiosos e pela banda de música da cidade. Apresenta o Bom Jesus com o braço estendido, abençoando o rio e os que dele vivem. Foi esculpida há mais de um século pelo mestre Cesário Procópio, um saudoso santeiro penedense. As embarcações deslizam pelas águas do São Francisco e são aplaudidas pelas populações ribeirinhas, em desfile de mais de duas horas, começando um pouco antes das quatro horas da tarde e terminando um pouco depois das dezoito horas da noite. É uma tarde inesquecível, tanto pela movimentação cultural e religiosa, quanto pelas variadas cores dos barcos, das águas e do céu, tendo como cenário de fundo a paisagem encantadora de Penedo.