Zulene e o mar no Ceará profundo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 25 de Janeiro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Passei esse janeiro de 2007 acompanhado por um dos mais agradáveis livros que li ultimamente. “1001 Histórias do Ceará” (Secult, 2006) é composto de três dezenas de contos populares brasileiros, muito bem transcritos por Myreika Falcão. As histórias, coletadas em diversos municípios cearenses pelo professor Fabiano dos Santos e pela antropóloga Andréa Havt Bindá (1968 – 2006), conta com ilustrações em xilogravura, feitas por Rafael Limaverde. Obras como essa, que dão vazão ao nosso imaginário contido pelas barragens de certos preconceitos existentes contra a cultura popular, são indispensáveis para a compreensão dos arquétipos formadores da cearensidade. São contos de seres fantásticos, reis e bichos que falam, cheios de ensinamentos e humores da cultura popular.
Os aspectos relacionados ao fantástico, que encontrei nessa obra de construção atemporal e coletiva, levaram-me a recordar alguns momentos de grande encantamento que vivenciei ao lado de um casal do interior de Boa Viagem, ao qual tive o privilégio de acompanhar em Fortaleza, no dia em que marido e mulher conheceram o mar. Ele se chama Neto e ela Zulene. Ambos foram protagonistas de um livro-reportagem, intitulado “Retirantes na Apartação” (Qualitymark, 1995), que lancei em meados dos anos 1990 em um seminário sobre literatura e jornalismo, promovido pelo Curso de Comunicação Social da UFC.
Convidei-os para o lançamento e eles aceitaram. Ficaram hospedados lá em casa. Na hora do café da manhã, tentei quebrar o silêncio que nos unia, provavelmente um pensando o que o outro estaria pensando. Com o Neto eu tinha conseguido trocar algumas raras palavras, mas com Zulene as minhas tentativas de conversa haviam falhado plenamente. Algo me dizia que a participação no lançamento do livro não era a principal razão de eles terem aceitado o meu convite. Procurei, na maneira mais jeitosa que pude, perguntar aos dois o que os teria motivado a largar os afazeres do campo para se deslocarem a Fortaleza.
Neto permaneceu parado e calado. Zulene olhou para ele, como que informando, apenas com o olhar, que iria falar a verdade. Virou-se para mim e disse: “Nós viemos porque queremos que você nos mostre o mar”. Fitou-me nos olhos como se interrogasse: “Você pode fazer isso?”. Respondi imediatamente que sim, que seria uma satisfação. Por alguns décimos de segundos, enquanto eu confirmava que os levaria para conhecer o mar, uma explosão de pensamentos difusos trouxe à minha mente algumas lembranças da aventura que passamos juntos, numa viagem de pau-de-arara, ônibus, metrô e a pé, que se estendeu do interior do Ceará até a periferia de Diadema, na região metropolitana de São Paulo, em 1986.
A fantasia tomou conta da minha atenção. Tentei presumir o que significaria o mar para eles. Entretanto não foi preciso imaginar, pois Zulene adiantou a resposta com uma pergunta: “O mar ainda tem muitas serpentes gigantes?”. Eu não acreditava no que estava escutando. Só poderia estar ouvindo coisas. Mas Zulene insistiu: “Tem?”. Não me senti com autoridade para responder. Disse-lhe apenas que ela não se preocupasse que eles iriam gostar do mar. Virei-me para o Neto e reforcei a minha promessa com um movimento positivo de sobrancelhas. Eles pararam de comer. Ficaram estáticos como se quisessem me fazer compreender que queriam ir logo.
Levei-os a dois lugares que entendi como emblemáticos para a circunstância: ao porto de jangadas do Mucuripe e à foz do rio Cocó. No primeiro ponto procurei mostrar-lhes os jangadeiros para que eles, como agricultores, conhecessem os trabalhadores do mar, suas atividades na preparação das embarcações, a produção de redes de pesca e o mercado do peixe. Comecei pelo Mucuripe para ter nos elementos da cultura um amortecedor estético. As castanholeiras, as jangadas, o porto e o próprio movimento no calçadão diluíram um pouco o choque do encontro com o mar.
A chegada ao segundo ponto foi pensada de forma que eles encontrassem o mar, acompanhando o curso do rio Cocó. Queria que eles experimentassem a sensação do encontro das águas. E chegamos à foz pela margem do rio. Quando eles menos notaram já estavam na praia, recebidos por pequenas ondas espumadas que quebravam a seus pés. Zulene viu as conchinhas na areia e ficou sem saber o que fazer. Olhou para mim como se indagasse: “Posso pegar algumas?”. Gesticulei que sim. Ela encheu a barra da saia do vestido de conchas de todas as cores e formas. Deu vários nós na roupa molhada para não perder as lembrancinhas do mar. Neto não se mexia. E também não conseguia levantar a cabeça. Tentei interagir com ele. Aproximei-me e sugeri que colocasse um pouco de água na boca para ver como era salgada. Ele colocou. Cuspiu discretamente na mão como se não quisesse sujar a água. Sem olhar para mim, confirmou que concordava, com um leve balançar de cabeça.
Fomos tomar água de coco. Quando sentamos nas cadeiras da mesa da barraca foi que eles se deram conta da imensidão do mar. Zulene passou a olhar com veemência para o horizonte. Neto não conseguia fazer o mesmo, não encarava a amplidão. Virado para a mulher, ele só conseguia balbuciar algumas palavras: “Tu tá vendo, Zulene?”. Ela olhava para o mar, ele olhava para ela e eu olhava para os dois, enfeitiçado pela magia daquele instante de síntese do Ceará profundo. Aquela cena me abalou, prolongou em mim as supostas imagens que Zulene projetava de dentro de si no mar-oceano e no sorriso nervoso e deslumbrante do Neto.
Repassei em mim essa lembrança do dia em que levei Neto e Zulene para conhecer o mar, ao ler o livro “1001 Histórias do Ceará”. A semelhança entre o casal que ciceroneei e os narradores da publicação não se dá pelo jeito de contar a vida. Aliás, nisso eles são muito diferentes: Neto e Zulene são calados e reservados, enquanto, pelo jeito, os contadores dos contos populares, gravados por Fabiano e Andréa e transcritos por Myreika, gostam de conversar. O que os torna parte de um mesmo todo é a conservação da alegoria em suas mentes. Ser assemelhado pelo enredo da vida é mais importante do que pela forma como cada um a conta. E não estou falando somente deles, nem somente do passado…