A hora da TV ver a sociedade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 01 de Março de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O Portal de Notícias da Globo (*) publicou no último dia 19/2/2007 resultados de um estudo britânico sobre o que pode acontecer com as crianças quando elas vêem muita televisão. Os efeitos negativos anunciados são assustadores: obesidade, puberdade precoce, autismo, miopia, mal de Alzheimer, transtornos de sono e até câncer, neste caso, em decorrência da redução de melatonina, o hormônio do sistema imunológico. O sono irregular faz aumentar inclusive o risco de desenvolvimento de diabetes. No sábado passado, dia 24/2/2007, a GloboNews divulgou uma pesquisa feita com crianças brasileiras e revelou que mais de 90% delas têm na TV o seu principal espaço de diversão.
Mas esses problemas de saúde, somados às perturbações sociais e culturais, resultantes da atenção exagerada à televisão, não recaem somente nas crianças; os adultos, especialmente os desempregados, os desocupados e os vadios que ganham sem trabalhar, estão suscetíveis à sua influência. Ao, via de regra, eleger e propagar de forma sensacionalista os fatos referentes a temas de distúrbios sociais, tais como a contaminação da violência, e ao exibir uma expressiva quantidade de programas de entretenimento que são verdadeiros lixos sub-culturais, parte da nossa televisão promove o sentido de impotência e de fracasso na coletividade, causando uma ampla sensação de vazio e dificultando o entendimento na busca de soluções com equilíbrio.
A valorização da esperteza e a banalização das relações humanas, temas reincidentes na tevê com destaque para os falsos afetos e emoções cínicas, estimulam uma grande confusão entre o que é a realidade e o que é a versão da televisão na vida das pessoas. Essa ambigüidade provoca descrença e distúrbios de racionalidade, levando o telespectador a reações que vão da servidão voluntária, que é a ausência de afirmação, e a compulsão consumista, que se dá pela substituição dos desejos essenciais pelos desejos induzidos. No entanto, as pessoas vítimas dessa exposição não vinham sendo avisadas dos perigos que correm, especialmente no que se refere aos prováveis embaraços de discernimento a que são submetidas na hora de encarar de modo comedido os riscos de seus atos.
De tanto serem processadas, executadas na justiça e levadas a pagar grandes indenizações por danos à saúde, a indústria do tabaco e os laboratórios farmacêuticos entenderam que colocar advertências em maços de cigarros e preparar bulas de remédios quase como peças jurídicas, sai muito mais barato e, mesmo perdendo um pouco de mercado, passa a responsabilidade para os fumantes, para os médicos e para os que se automedicam. No caso do comércio de cigarros essa postura ocorre por força de lei e a contrapropaganda obrigatória expondo os males do tabagismo vem contribuindo, desde 2002, para a redução de fumantes no Brasil.
Diferentemente do que ocorre com a indústria de tabaco e com os laboratórios farmacêuticos, a televisão brasileira está tendo uma tolerância da sociedade civil para ajustar seus rumos na melhoria da qualidade da informação, do entretenimento e da adequação de horários da grade de programação. Logo, no dia 12/2/2007, o Diário Oficial da União publicou a portaria de nº 264, por meio da qual o Ministério da Justiça, após uma série de audiências públicas e seminários, atendeu uma reivindicação da sociedade, de exigir o esclarecimento de conteúdos e a definição de horários para a exibição de programas, conforme faixas etárias, criando sanções às emissoras que desrespeitarem os telespectadores. A partir dessas recomendações e da sinalização de penas às empresas que agirem de má-fé, as próprias emissoras que, ficando ainda com o direito à contra-argumentações, passaram a se encarregar de aplicar as variáveis fixadas.
A classificação indicativa determinada pelo governo é um mecanismo comum nos meios de radiodifusão das democracias mais avançadas da União Européia e de outros continentes e não passa de uma organização do olhar das pessoas para que tenham o direito a fazer escolhas conscientes. Mais do que isso, estimula o direito de oportunidade de exibição do que temos de melhor em termos de manifestações culturais, hoje praticamente proibidas de irem ao ar por conta do domínio dos espaços pela força econômica da indústria cultural e do poder político dos remanescentes das Capitanias Hereditárias. Assim, a exibição da advertência da faixa etária e do teor dos programas contribuirá para chamar especialmente os pais à responsabilidade com relação ao que os filhos assistem. Certamente ajudará também às emissoras a prepararem melhores conteúdos audiovisuais na busca de uma audiência que tenderá a ser mais bem qualificada.
Se a observância da classificação indicativa servir neste primeiro momento pelo menos para gerar desconforto de consciência nos pais que abdicam da educação dos filhos, já terá valido a pena essa conquista. Estão postas as condições mínimas de liberdade de escolha para fortalecer a convivência e preservar a força cooperativa e fraternal no nosso frágil tecido social. A questão da televisão é antes de tudo uma questão educacional. As crianças estão tendo a sua formação ética e sua sociabilidade primária, papéis antes assumidos pela família, entregues a programações televisivas, muitas delas completamente inaceitáveis.
Dependendo da clareza que tivermos da classificação indicativa dos programas de televisão, o mercado da emissão de lixo eletrônico seguirá ou não aniquilando o que ainda resta de nossa propriedade moral. A televisão é um espaço público, uma praça que entra em nossos lares a baixo custo, praticamente um insignificante consumo de energia elétrica. Fora de casa a brincadeira é muito mais cara. Na condição de ambiente público que se expressa largadamente no âmbito privado, a televisão tem responsabilidades diferenciadas dos demais veículos de comunicação. Se um camelô tirar a roupa em plena praça, ele será imediatamente reprimido. Por que, então, os camelôs da tevê podem deliberadamente fazer toda sorte de strip-tease nas casas das pessoas? Neste aspecto, a sociedade é uma só, não há razão para dois pesos e duas medidas.
Em artigo publicado na Folha de São Paulo de 23/12/2007, o filósofo Renato Janine Ribeiro simplifica o principio kantiano (Immanuel Kant, 1724 – 1804) de que uma ética humana é possível: “a cada ação que cometo, estou reconhecendo o direito (ou o dever) de todo ser humano a também cometê-la”. Isso, realça Ribeiro, significa que se alguém procura levar vantagem em tudo, está conferindo aos demais os mesmos direitos, o que tornaria o convívio impraticável. Aplicando esse raciocínio ao senso divinal que defende a intocabilidade da tevê, torna-se claro que não convém à sociedade brasileira manter um sistema televisivo, cujas práticas sigam destituídas de limites. É uma questão de pedagogia social. Com a classificação indicativa, surgem oportunidades para programações a serem repensadas em parâmetros de co-responsabilidade social e cultural. Assim, tal qual os telespectadores, a televisão tem muito a ganhar em se tornando mais humana, com programação mais decente, mais criativa, mais construtiva e mais livre na circulação de idéias.
A portaria do Ministério da Justiça é, portanto, bem-vinda e traz em sua significação o alento de que somos uma sociedade que amadurece. Conquistas como essa animam à crença na mobilização social e na prudência democrática, com a qual temos conseguido avanços na nossa emancipação política. Fará bem a nossa gente contar com um sistema de televisão que decerto procurará enxergar a sociedade com mais respeito, tanto pelo caráter de concessão pública que é, quanto pelo importante papel que desempenha na construção permanente do nosso País.
(*) www.G1.com.br