A construção da memória africana
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 08 de Março de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Muito se tem falado sobre a África. Falas que se misturam em contraditórias versões e interesses discrepantes. Quer na busca de libertação das sobras de sofrimentos da travessia negreira nos porões da vida moderna ou na tentativa de transferência de atenção
Destacam recortes de um continente de 30 milhões de quilômetros quadrados e chamam genericamente de África.
Nessa busca de parecer solidário, ocorrem muitas vezes exageros que deformam a compreensão do problema. Tudo da África parece encantado e encantador. E não existe sociedade assim em qualquer lugar do planeta. Todos os povos e nações têm suas abundâncias e suas zonas de insuficiências. Essa idolatria não é boa para a África nem para lugar algum.
O tamanho e a intensidade da tragédia africana nos impulsionam a tratá-la como coitadinha. Dos mortos e dos infelizes não se fala mal. Já têm infortúnios demais.
Por tudo o que a África significa para o mundo, como berço da humanidade, como centro gerador de expressões culturais verdadeiras; por tudo o que significa especialmente para nós, brasileiros, como elemento matriz étnica e cultural da nossa riqueza mestiça, é imprescindível que nos mobilizemos para cuidar desse patrimônio mundial.
Nossa relação com a África é muito mais do que essa rotina de desencargo de consciência.
A importância da África em nossas vidas só será concretamente reconhecida se conseguirmos escapar da hipocrisia no tratamento das questões relativas a esse continente múltiplo. Precisamos ter coragem para romper com a pieguice e tratar essa questão de frente.
Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, de 23/2/2007, o editor da revista Superinteressante, Leandro Narloch, escreveu, de forma um tanto caricatural, sobre o que chamou de mentiras da escola de samba Beija-Flor, com relação ao tema sobre a África que deu à escola de Nilópolis o título de campeão do Carnaval carioca deste ano.
O argumento de Narloch chama a atenção para o equívoco de ancorar o fenômeno da escravidão apenas no tráfico de negros para as Américas. “Por rotas saarianas e orientais, os africanos venderam até 25 milhões de pessoas, mais do que o dobro das que vieram para a América (cerca de 11 milhões)”. Diz que a riqueza dos reis africanos era decorrente da crueldade do trabalho escravo. Com relação ao comércio transatlântico de negros, escreve: “Eram negros africanos os homens que atacavam povos no interior da África, capturavam escravos, matavam fugitivos, construíam forquilhas para vender vários negros pelo pescoço (…) Também eram africanos vários colegas de europeus nos navios tumbeiros, traficantes riquíssimos…”.
Essa leitura, que aproxima setores da África aos costumes do seu tempo, expõe uma verdade ferina, replicada por Nei Lopes, autor da “Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana” (Editora ____) que, em réplica no mesmo jornal, de 01/03/2007, realça com lucidez que a participação africana no tráfico não deve reduzir o tamanho da responsabilidade dos europeus na tragédia. Denuncia que Narloch, ao denunciar inverdades no enredo da Beija-Flor, também mente, falseando a verdade histórica. Lopes mostra-se otimista com a entrada em vigor da lei nº 10.639, que institui o ensino obrigatório da história da África e das populações afro-brasileira nos currículos de base no Brasil.
Os dois textos, mesmo aparentemente contraditórios, são complementares. Precisamos de muitas versões para construir uma memória africana mais consistente do que a que temos hoje. É um caminho para compreendermos melhor as Áfricas e melhor nos compreendermos. Como fazer isso sem extremismos é o grande desafio da educação brasileira. Não há uma só África, nem um só tempo africano ou uma memória multiétnica do continente.
Estive recentemente em União dos Palmares (AL) e percebi algumas movimentações que, acredito, caminham no sentido de dar visibilidade à cultura afro e sua influência na vida brasileira. O projeto “Zumbi visita a escola” é uma boa idéia, ainda mal resolvida, apoiada em uma cartilha precária, como trabalho de referência, mas é um esforço. Percebi o aumento da valorização da comunidade quilombola do Muquém, formada por artesãos da argila que mantém técnicas dos antepassados. E percebi um grande avanço no entendimento dos defensores da cultura afrobrasileira que consentiram abrir de maneira estruturada o solo sagrado e sede principal do Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, como contribuição ao fortalecimento da construção da memória africana.
Uma vitória do diálogo e da sensatez.
São fatos que alteram a angulação da historiografia brasileira, que interpretava a resistência dos escreavos negros como manifestações marginais de mera dimensão antiaculturativa.
A história da humanidade, do oriente ao ocidente, de norte a sul, passa por episódios de escravidão. Na África não foi diferente.
O advento das grandes navegações, no século XV, foi que organizou a escravidão como negócio global.