A reinvenção da gambiarra
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 21 de Junho de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O significado mais comum do termo gambiarra remete a instalações improvisadas de energia elétrica. Com a crise de sobrevivência do planeta e o caráter descartável das novidades tecnológicas, essa palavra assume o sentido de forma ou ato de resolver criativamente problemas originados em situações desfavoráveis. Por um lado, passa a se adequar ao esgotamento dos recursos renováveis da natureza, como uma espécie de alternativa à tensão global, e, por outro, entra em linha com o fenômeno da reutilização do lixo tecnológico. Em ambos os casos, a gambiarra faz aparecer contradições disfarçadas no consumismo e suscita um processo que se repropõe enquanto cultura de sustentabilidade.
A sobrevivência aumenta a necessidade da gambiarra e pede socorro ao know-how da marginalidade. A saída pode estar na lição de espirituosidade das pessoas curiosas, que gostam do que fazem e se orgulham das pequenas inovações que produzem no dia-a-dia. Quem pratica a gambiarra está livre para inventar porque, de antemão, parte do princípio de que errar está dentro da busca por soluções na escassez.
Os fazedores de gambiarra desenvolvem um conhecimento tácito que normalmente se inicia com a criação dos próprios brinquedos. Embora sem uma consciência explícita do seu valor criativo transformador, essas pessoas armazenam em si caóticas fontes de soluções. O grande desafio de países como o Brasil, onde a cultura da gambiarra está instalada, desde as imposições restritivas da escravidão, é entender as vantagens inventivas desse forte traço cultural. Digo isso, levando em conta que criações como a feijoada e a capoeira, antes de se tornarem destaques da culinária e da dança, foram gambiarras de escape.
Todos nós recorremos a algum tipo de gambiarra em nosso cotidiano, mas nunca paramos para reconhecer o que nos limitamos a ver apenas como quebra-galho, como uma qualidade a ser melhor compreendida e valorizada. Todavia, se observarmos bem há gambiarreiros por todo o mundo. Sempre houve. A maioria das grandes invenções partiu de improvisos pouco recomendáveis. Em todas as áreas existem ilustrações notórias de que a gambiarra está na gênese da inovação.
O compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756 – 1791) tornou-se um gênio da música requintando e recriando melodias e sentimentos colhidos nos cabarés. O nosso genial Heitor Villa Lobos (1887 – 1959) tornou-se célebre refinando e relendo obras da cultura popular brasileira. Nossos modernos aviões são filhos dos devaneios de Ícaro, o mito grego que tentou voar com asas de cera que foram derretidas pelo calor do sol. Sem ele, sem a ousadia dos experimentos de Alberto Santos Dumont (1873 – 1932) e de outros sonhadores que fazem, o céu ainda seria apenas dos pássaros.
Na evolução da humanidade, a gambiarra sempre foi fundamental. Sem os experimentos da roda d’água não teríamos as modernas hidrelétricas. A indústria farmacêutica e de bebidas é filha dos curandeiros. Os meios de codificação de linguagens vêm dos rabiscos feitos nas cavernas da pré-história, dos códigos gravados em argila e pele de animais, e ressoam nos dispositivos da revolução digital.
Assim, a gambiarra vai sendo reinventada como uma expressão humana de busca de liberdade e sobrevivência. Processo que impõe um dilema urgente aos tempos atuais: a gambiarra é uma caricatura da realidade ou a realidade passou a imitar a gambiarra? O Skype, programa de conexão de usuários de telefonia adaptado aos computadores, que permite uma comunicação gratuita para qualquer lugar do mundo, não passa de uma gambiarra de telefone com a internet.
A chamada “snack culture”, espécie de cultura de degustação, na qual a informação e o entretenimento se realizam pela instantaneidade dos seus produtos e serviços, é uma gambiarra nascida da necessidade de sobrevivência de uma geração formada pela sedimentação do efêmero. Por conta de atender essa mesma carência, foi criado um jogo de simulação da realidade, o Second Life, no qual a gambiarra faz um puxadinho virtual dos limites físicos da mundo real. O sampler, programa utilizado pelos produtores musicais para copiar e colar sons, também é uma gambiarra das programações eletrônicas.
A discussão do conceito de gambiarra provocada pela banda Dona Zefinha em seu espetáculo e cd “Zefinha vai à Feira”, em temporada de lançamento, chama a atenção para a reinvenção da gambiarra em sua dimensão de convivência com a precariedade e de reciclagem imaginativa do tecnológico. A questão da gambiarra é apresentada com recursos cênicos e musicais pelo grupo performático cearense, como elemento essencial dos códigos culturais transversais, compostos por sistemas de referências que universalizam a criação muitas vezes solitária das gambiarras. Quando Orlângelo Leal toca o marimbau ou o banjo de panela de pressão, criados por Cláudio Silva, ele entra em sintonia de zona desconhecida com a instalação do artista israelense Guy Bem-Ner, na qual basta pedalar uma bicicleta para acionar a exibição de filmes.
A lógica do produto descartável gerou um impasse na vida de quem vive de fazer consertos. A saída foi reinventar, tirar a parte que funciona de um equipamento e acoplá-la à de outro que ainda está em boas condições. A sucata tecnológica que se avoluma com o consumismo é uma grande fonte de matéria-prima para o trabalho dessa gente. É imensa a quantidade de equipamentos de informática, celulares e outros materiais eletrônicos descartada. Nesse jogo de colagens os gambiarreiros misturam parte de computador com celular para fazer o conserto de uma televisão. Associo este tipo de reprocessamento à linguagem criativa da poesia dos folhetos de cordel. Essa literatura popular é uma gambiarra produzida a partir da oralidade e da recontextualização de informações colhidas por meio da conversa com tropeiros e de acessos fortuitos a fontes de conhecimento organizado, tais como as publicações de Lunário Perpétuo, no passado, e a televisão, na atualidade.
A evolução dos programas de computadores e da Internet, criou as condições para novos tipos de gambiarra. Assim como os autores de cordel, a juventude contemporânea têm disponível um maravilhoso instrumento de acesso a dados e informações, nem sempre bem contextualizadas. O debate virtual dos blogs mostra a eminência de uma linguagem sincopada, interativa e veloz que está gestando uma nova gramática.
Percebo os significados extensivos da gambiarra como um exercício criativo de sobrevivência e não como uma possibilidade de categoria social emergente. O risco do enquadramento da gambiarra é o de negá-la. Atualizar a acepção dessa palavra é uma oportunidade que temos de variar a angulação do olhar, fugindo do poder hipnótico da classificação. Quando falo em classificação não me refiro à organização de características básicas de assemelhamento, que auxiliam a compreensão, mas ao que o ato de classificar impõe de conveniências inibindo a liberdade evolutiva das possibilidades. No contexto de tensão global que vivemos, a gambiarra certamente tem uma contribuição a dar na reorganização das nossas energias e na reinvenção de hábitos e de padrões de comportamento.