Muitas das lembranças que temos da infância são recordações que ouvimos alguém contar e assumimos como feito próprio da nossa memória. Outras tantas, vivenciamos de fato o que nos chega como pensamento distante. É desse novelo de imprecisões que puxo a ponta de uma das mais agradáveis referências afetivas que tenho da minha mãe. Ela cantava para mim um pout-pourri de expressões de aconchego, como quem juntava retalhos sonoros para me embalar.
Certo dia, já menino brincando na rua, descobri gritando palhaço que uma dessas cantarolices dela estava associada ao circo:
– Hoje tem espetáculo?
– Tem, sim senhor!
– Às oito horas da noite?
– É, sim senhor!
– Hoje tem marmelada?
– Tem, sim senhor!
– E o palhaço, o que é?
– É ladrão de mulher!
– E o palhaço, o que foi?
– Ladrão de boi!
– Vou ali e volto já!
– Vou comer maracujá!
– Ô raia o sol, suspende a lua!
– Olha o palhaço no meio da rua!
– E o Benedito Bacurau?
– Tá no oco do pau!
– Arrocha, negrada!
– Uhhhhhh!
Além da brincadeira, seguir e responder o palhaço da perna de pau pelas ruas em sua divulgação do espetáculo dava a entrada de graça no circo. Mas, particularmente, ganhei uma novidade preciosa para a minha vida, que foi saber a fonte inspiradora dos versos “Benedito Bacurau / Tá no oco do pau”, que a minha mãe entoava para mim.
E toda vez que ela cantava o Bacurau como recurso de ninar, eu lembrava da cena de rua, e isso me conduzia ao sono. O mesmo ocorria quando chegava um circo em Independência e eu ia gritar o palhaço. Fazia aquilo com alegria redobrada, pois mesmo meus pais não concordando muito com a minha participação naquele chamamento público circense, na hora de responder que o Benedito Bacurau “tá no oco do pau” eu sentia a voz da minha mãe saindo junto com a minha.
Décadas depois, quando comecei a fazer cantigas para a hora de dormir dos meus filhos, senti a presença afetuosa da minha mãe cantando para mim “Benedito bacurau / Tá no oco do pau”; a figura engraçada do palhaço perguntando “E o Benedito Bacurau?”; e a minha voz de menininho respondendo “Tá no oco do pau!”. Senti também o voo silencioso e brincalhão da corujinha bacurau, tão comum nas estradas de terra do interior.
As emoções e os sentimentos tecidos nesses vínculos me levaram a escrever o áudio-livro “Benedito Bacurau – o pássaro que não nasceu de um ovo” (Cortez Editora, 2005), com vinhetas musicais e literatura recitada pelo artista pernambucano Antônio Nóbrega. No prefácio, Rubem Alves (1933 – 2014) escreveu que “diferente das outras aves, o Benedito Bacurau não nasceu de um ovo. Ele nasceu de uma cantiga de ninar que a mãe do Flávio Paiva cantava para ele”.
E a partir da expressão cantarolada pela minha mãe, compus um acalanto que diz assim:
Benedito bacurau
Tá no oco do pau
Benedito quer caçar
Tem inseto pra danar
Benedito tá cantando
Bacurau quer namorar
Ba-bacurau
Folha seca pelo chão
Ba-bacurau
Esconde sim, esconde não
Acende o olho bacurau
Vem brincar de avião
Benedito meu amigo
Pegue aqui na minha mão.
A importância do Bacurau nos meus laços afetivos profundos me levou a escolher a melodia dessa música para integrar o repertório do livro-cd AFETO (Cortez Editora, 2017), no qual compartilho aspectos amorosos da paisagem de sons e sentimentos por onde andei durante a gestação e a infância dos meus filhos.
As ilustrações dos poemas circulares desse livro foram feitas em traços maternais de Janaina Tokitaka, a partir de figuras de móbile que ela criou para seu bebê quando estava grávida. E todas as músicas instrumentais de ninar receberam a ambiência do piano imagético, flutuante e suave de Eugênio Matos. E por aí voa o Benedito Bacurau.