Dona Socorro à luz de D. Hélder
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 28 de Junho de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
No livro “O deserto é fértil” (Civilização Brasileira), Dom Hélder Câmara (1909 – 1999) proclama que existem pessoas que nasceram para se dedicar ao próximo. São aquelas que receberam o dom divino de ser presença discreta na hora da firme decisão interior de aprender, às próprias custas, a ser instrumento de felicidade, amor e paz. Revisitei este pensamento do querido e rebelde líder religioso e político cearense, logo que retornei do sertão no domingo passado, motivado pela alegria da observação enlevada que fiz da minha mãe Socorro, na ceia familiar do seu aniversário de 70 anos, completados na sexta-feira, dia 22 deste mês.
Longe das facilidades prontas que caracterizam o mundo contemporâneo ela vive a grandeza da existência com simplicidade, praticando a vida sem esforços para enquadrá-la. A vitalidade serena da Dona Socorro flui pela afirmação da força de fertilidade das suas virtudes e não pela perseguição a qualquer verdade estabelecida. Vendo-a cheia de encantos, entre amigos e familiares, fiquei pensando como alguém pode se doar por tanto tempo ao propósito de ver os outros felizes. E a palavra de Dom Hélder me responde que Deus pede mais de quem recebe mais, exatamente porque quem recebe mais, recebe em função dos outros.
Estou certo de que a minha mãe está entre as que receberam muito de Deus para poder ter tanta amabilidade. Sua experiência, sua voz, sempre estiveram perto de nós e do que somos. Ela, como meu pai, nunca quiseram moldar os filhos a seus desejos e sonhos. Sonharam e sonham o que sonhamos. Escolhemos áreas profissionais diferentes e jeitos distintos de ser e eles partiram conosco em nossas buscas. Fizeram e fazem isso sem largar os pés do solo árido, mas fecundo, de Independência, da caatinga, dos Inhamuns. “Partir é antes de tudo sair de si”, ensina Dom Hélder. E quem sai de si e parte precisa ter a coragem de cruzar desertos.
Distante de qualquer posição predeterminada com relação a tudo o que se possa imaginar, a minha mãe expressa uma incrível capacidade de reler de maneira diferente as mesmas coisas. Uma das características do seu pensamento criativo é achar umas pessoas parecidas com as outras, pela identificação quase lúdica de elementos de extrema sutileza. Ao dizer comumente que fulano parece com sicrano de beltrano, ela exercita uma habilidade multiplicadora de referências, desenvolvidas a partir de informações recortadas do cotidiano. Ela tem uma presença de exterioridade fascinante, que a leva a descobrir novidades em tudo com que se depara.
O exercício de realismo total é outra particularidade deslumbrante da minha mãe em sua plenitude humana. Dotada da admirável ingenuidade das crianças, não dá para inventar uma mentira na frente dela, que ela imediatamente faz a devida correção pelo restabelecimento da verdade. Ela não percebe a segunda intenção de um mentiroso, por mais bem intencionado que este possa estar. Faz isso por reflexo esplendoroso do seu ser. Como ela não tem intenção oculta, não se dá conta de que os outros possam ter. Ela se realiza em sentimentos e vontades reais, sejam de alegria, de tristeza, prazer ou dor. Sua fala é sempre uma confirmação do que está sentindo, um atestado de confiança no outro.
Sabe-se que normalmente as relações entre as pessoas não são constituídas apenas pelo que conhecemos dos outros, mas também por tudo aquilo que pode haver por trás dos propósitos reservados de cada um. Para a Dona Socorro tudo isso parece ser uma grande bobagem. Ela se relaciona por inteiro, não tem esse negócio de subterfúgio. Não perde tempo tentando interpretar o que o outro quer ou não dizer, mas o que diz. Ela coloca a alma no que acredita; e acredita nas pessoas. Suas antenas não captam dissimulações, estão em outra freqüência, por isso não entram em sintonia com quem tem agenda oculta.
Das características da minha mãe, uma das que considero mais admiráveis é aquela que não a deixa ser atraída pela inveja. Nunca, mas nunca mesmo, presenciei qualquer ausência de satisfação real no semblante da minha mãe, diante da revelação de que algo de bom aconteceu com outra pessoa. Na simplicidade com que ela trata a complexidade de recriar a vida todos os dias em seu recanto de amor, de reza e de trabalho, não comporta a cobiça do alheio, nem há ambiente para medição da felicidade a partir da ventura ou desventura do outro.
Dona Socorro faz parte do grupo de transformadores sociais anônimos, dos grandes pedagogos da vida, aquelas pessoas que, com largueza discreta, assumem os riscos de passarem despercebidos em suas grandezas. Lançando mão novamente do texto de Dom Hélder, diria que a minha mãe, por ter recebido o dom da magnanimidade, consegue falar-nos em cumplicidade com os nossos desejos e necessidades. No dia da sua festa de 70 anos, ela acordou às quatro horas da madrugada para preparar a ceia. Por que precisaria de tanto tempo para isso? Porque quis, ela mesma, caprichosamente fazer o prato predileto de cada um. Somos três filhos, o Paulo, a Cynara e eu, que sou o do meio. Estávamos todos com nossas famílias e afins. Só não puderam comparecer duas netas, filhas do meu irmão, uma que passa temporada de intercâmbio na Austrália e a outra que mora em Nova Iorque e acaba de dar à luz uma menina, a Júlia, primeira bisneta dos meus pais.
Na mesa, observando prato por prato, comecei a pensar na satisfação da minha mãe ante aquela oferta da sua alquimia culinária. Nessas circunstâncias, ela fica quase sem conseguir comer. Mesmo com tudo à mesa ela mantém a disponibilidade do espírito de tornar as coisas sempre mais gostosas e melhores. O possível para ela é o que tem como ser realizado em favor do que é melhor para todos nós. É quase como se ela entendesse que a realização própria tem os seus limites dentro de algo tão pleno quanto a vida. É incrível como ela se realiza na intensidade do instante, desdobrando o real, assumindo a realidade em seu caráter de processo.
A virtude do desapego ao que pode denotar começo ou fim está em seu jeito de amar. O modo como ela pratica a simultaneidade do amor é de uma claridade sertaneja. Como filho, senti e vi, sinto e vejo meus irmãos sentirem que ela se dá a um tanto quanto ao outro, em intensidades ajustadas aos quereres de cada qual. É impressionante a sua disposição inata de não estacionar em qualquer um de nós e, ao mesmo tempo, de estar presente com o seu coração em nossos corações. A “Mãezinha”, como a chamamos desde pequenos, nunca foi de apriorismos nem de hierarquização de questões e soluções. Ela abraça os conflitos sem jamais assumir a propriedade das saídas encontradas por meio de sua habilidosa circunspeção.
O aniversário de 70 anos da minha mãe ganhou para mim a conotação de comemoração da vida com naturalidade. Animada em poder nos mimar, ela não parece querer explicações para nada, apenas deixa que a existência se desenrole como se a própria existência estivesse posta simplesmente para, antes de tudo, existir. No dia seguinte, quando levantamos, ela estava com uma muda de planta ornamental, preparada para fincarmos juntos no terreiro de casa. Na hora da despedida ela olhou para a plantinha, que balançava em carícias soltas de vento, e disse: “Logo mais ela vai crescer e da próxima vez que vocês vierem o alpendre vai estar mais fresquinho e a casa mais bonita”. Foi nesse momento que deu vontade de reler a mensagem de Dom Hélder Câmara.