O livro AFETO é uma síntese poética e musical da experiência de construção de vínculos que tive com os meus filhos (e com a mãe deles, óbvio) durante a gestação e a primeira infância. É também um esforço de compartilhamento do aprendizado que tive nos tantos momentos de leitura com os dois, especialmente na hora de dormir.
De tudo o que aprendi nessa vivência, um dos achados mais reveladores é o da atração da leitura por meio de fluxos de olhares, ouvires e tocares como desenvolvedores de percepções e compreensões próprias de cada criança. Nos momentos iniciais, as palavras e os sons não precisam representar nada.
O significado, no sentido lexical, não tem tanta importância na vida intrauterina e nos primeiros anos de vida do bebê. Cultivar afetos por meio da leitura é facilitar a recepção com aberturas à experimentação livre com os signos. O que faz ou não sentido é o sentir e não a significação.
Isso quer dizer que o melhor caminho para a iniciação de leitura dos nossos filhos é a disponibilização do texto – e no caso do livro-cd AFETO, da música – como se as palavras e os sons fossem figuras de um móbile, cujo contato tem menos de táctil e mais de movimento.
As primeiras leituras têm um quê da complexidade dinâmica que se transforma em prazer, como quando aprendemos a andar de bicicleta. É algo do estatuto do suspenso e pode não ser facilmente aceito por adultos formados no senso educacional da transmissão do que se quer que o outro entenda.
Um dia desses recebi a mensagem do tio de uma menininha de cinco anos, questionando se o AFETO (Cortez Editora) é mesmo um livro de linguagem infantil. Ele argumenta que o entendimento da sua sobrinha em algumas expressões do livro – lajota, frondosa, romper a casca, carranca, rugoso e ouriço – “vai desaparecer na imaginação”.
Cita o exemplo das histórias da Branca de Neve, que embora “fácil de entender” necessitam de “um trabalho na assimilação do texto, via mímicas teatrais simples ou a criança perde o foco”. No livro AFETO, “daqui que a criança vá entender o que é ‘rugoso’ ela perde na imaginação o significado do enredo”.
Este é um ponto muito importante da proposta do AFETO. Em vez de “desaparecer”, o entendimento faz é “surgir” na imaginação infantil quando a potência que está na palavra ganha força em sinergia com a potência perceptiva da criança. Mais do que foco, a poesia e a música para a vida placentária e para a primeira infância deve ter como propósito sentimentos e emoções.
O poema circular permite que a criança acompanhe sem ansiedade aspectos dos sons das palavras, suas estranhezas, seus ritmos, sua virtualidade fonética. Rugoso, por exemplo, tem uma textura “rugosa”; frondoso é um termo “frondoso”; ouriço, então, nem precisa dizer do quanto pode “espinhar”.
Como elementos de atração nos primeiros momentos de leitura compartilhada (adulto e criança), o valor dessas palavras está no sentir e não no entender. Com o tempo os significados vão chegando conforme o repertório e a capacidade de percepção de cada criança e de quem com ela lê. Tratam-se, portanto, de deslocamentos sonoros de curiosa audição que podem levar ao interesse pela leitura.
Ler para o bebê na barriga da mãe (principalmente quando é a própria mãe quem faz a leitura) é um exercício de criação de vínculos fundamental para o equilíbrio dos sentimentos e das emoções da criança. O uso da música nessas circunstâncias também é de grande valor como preparação para o pós-parto e primeiros anos de vida.
Há muitas maneiras de interagir com a criança na formação do hábito de leitura. No caso do AFETO, além da música imagética do piano de Eugênio Matos, é gostoso observar as ilustrações flutuantes de Janaina Tokitaka, inspiradas no móbile que ela preparou para a filha, quando estava grávida. AFETO é, antes de tudo, uma experiência de sensibilidade.