O drama cubano no pódio vazio
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 02 de Agosto de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
No último dia dos XV Jogos Pan-americanos Rio 2007 o pódio que deveria estar ocupado por atletas da seleção cubana de vôlei masculino apareceu vazio. Boa parte da delegação de Havana teria retornado antes do previsto para evitar uma suposta deserção em massa, ficando somente uma representação de atletas e dirigentes para a cerimônia de encerramento, domingo passado, no estádio do Maracanã. Foram divulgados casos de fuga de um atleta de handebol e de um técnico de ginástica artística, que estariam refugiados no interior de São Paulo, e de dois boxeadores, que foram cooptados pelo comércio de atletas da Alemanha.
Ao olhar para o lugar onde os classificados nos primeiros lugares são apresentados ao público, na hora de receber as medalhas, e ver um pódio vazio, tive quase o mesmo impacto do dia em que entrei em Havana e não vi qualquer placa com anúncio de produtos de consumo. São circunstâncias distintas, mas que falam de uma mesma realidade; a realidade de um povo que, por ter coragem de dizer não, vive em situação de guerra há cinco décadas. E uma situação de guerra muito desigual, considerando que a Ilha caribenha tem apenas cerca de 1,2% do território, 3,6% da população e 0,32% do PIB dos seus maiores inimigos, que são os Estados Unidos. Sem falar no poderio bélico e de comunicação, para os quais nem dá para estabelecer percentuais comparativos.
O sofisticado terrorismo financiado pelos EUA para desconstruir a imagem positiva de Cuba é assustador. Eles não suportam ver os cubanos aparecerem sempre e imediatamente colados neles nas competições desportivas das três Américas. Tanto que competições como o Pan, praticamente não são transmitidas por lá. É inadmissível para a soberba estadunidense que, das 42 delegações de países participantes do Pan 2007, a cubana mais uma vez tenha garantido o segundo lugar em medalhas de ouro. Por outro lado, a disputa de posição de Cuba com o Brasil é estimulante para nós. A realização dos jogos no Rio de Janeiro foi um investimento fundamental para a elevação da nossa auto-estima e para estimular o gosto dos brasileiros pelos esportes olímpicos. Fizemos bonito na festa, nas pistas, nas raias, nas quadras e nos campos gramados.
Com a realização dos Jogos Pan-americanos em casa, criamos uma expectativa de participação para a juventude; uma participação mobilizadora e saudável. Tomara que essa motivação seja seguida da priorização do esporte no País. Os cubanos têm demonstrado com suas constantes vitórias que isso é uma questão de dar valor, de querer; uma questão de desenvolvimento de políticas públicas e de engajamento da sociedade. O esporte é um dos mais eficazes instrumentos de educação e de sociabilidade. Os comentaristas contrários a essa idéia alegam que os EUA conseguem ganhar o maior número de medalhas do Pan, apenas com atletas de segundo escalão. Vejo isso como um desafio; o desafio de um dia obrigá-los a disputar com os seus melhores atletas.
Mas nesse momento; no momento em que Cuba precisou chamar seus atletas campeões, antes do final do evento, porque eles estavam sendo assediados, precisamos ser solidários com o povo cubano. É muito difícil para um atleta ganhar uma medalha e ser impedido de recebê-la. No pódio vazio, deixado de lado pelos desportistas cubanos, manifestava-se uma indignação silenciosa; a indignação dos acossados. As claques contratadas pelos adversários da festa para vaiar, cumpriram o seu papel e vaiaram; mas, desconfiando ou não do que estava acontecendo, a maioria dos espectadores e telespectadores do Pan 2007 certamente ficaram incomodados com a denúncia simbólica corajosamente feita por Cuba.
Diante de tudo isso, ocorreu-me a lembrança da ocasião em que convidei um compositor cubano para vir a Fortaleza participar do lançamento do elepê América, da cantora Olga Ribeiro. Acho prudente não escrever o nome desse artista, a fim de que eu possa ficar mais à vontade para narrar o fato. Era o ano de 1992 e tínhamos produzido esse trabalho dentro das manifestações críticas aos 500 anos de colonização do continente americano. Foram uns seis meses de trâmites burocráticos entre advertências do Palácio do Itamaraty e corpo mole da Embaixada Cubana, para conseguirmos que ele viesse e participasse do show de lançamento do disco no Parque do Cocó.
A parte dessa história que tem ligação com os acontecimentos do Pan 2007 é a que diz respeito ao assédio que o compositor recebeu para não retornar a Cuba; ou melhor, para fugir para Miami. Ele passou dois meses conosco e nunca descobrimos como os agentes da Flórida encontraram o nosso número de telefone. O certo é que ligavam insistentemente prometendo mundos e fundos a ele. Diziam que com o talento que tinha, ele poderia viver muito bem nos EUA. Caso topasse, ele receberia a passagem, a documentação necessária, teria casa e roupa lavada em Miami e ainda ganharia um estúdio de gravação para trabalhar e ganhar muito dinheiro.
Foram momentos difíceis que passamos. Tínhamos assumido o compromisso de que ele retornaria a Cuba. Acontece que a pressão e a tensão causada pelas ofertas perturbadoras muitas vezes nos deixavam vulneráveis. Concluímos, todavia, que se ele não fugisse estaria contribuindo para o estabelecimento de um fluxo cada vez mais intenso de idas e vindas, o que seria um passo feliz no estabelecimento das relações culturais e de amizade dos cubanos com outros povos. Adianto que ele voltou e que, tempos depois, soube de apresentações suas nos palcos de Honduras, Nicarágua e Costa Rica.
Não foi simples escapar do cerco da base desestabilizadora da Flórida. Eles descobriram que o vôo do compositor sairia do Rio de Janeiro, com escalas em Caracas e na ilha de Curaçao. Telefonaram para dizer que se ele quisesse desviar a rota, poderia contar com um apoio na capital da Venezuela. Enquanto era assediado, o artista fez um recital no espaço cultural da Teleceará (hoje Telemar), ministrou umas oficinas no então Instituto Equatorial de Cultura Contemporânea e recebeu de presente uma pequena mesa de gravação, com oito canais, para montar um estúdio caseiro. Embora sendo uma retribuição simplória, foi a maneira que encontramos de reduzir a ansiedade provocada pelos oferecimentos que continuavam chegando de Miami. Já não sabíamos o que fazer diante de tanta insistência. Então, de última hora, às vésperas da partida, mudamos o vôo do compositor para uma conexão em Lima, no Peru. Ele foi de Varig, do Rio a Lima, e de Aeroflot, uma companhia aérea russa, de Lima a Havana.
Na conexão em Lima aconteceram dois fatos marcantes nessa história. O primeiro é que, não se sabe como, os agentes de Miami estavam lá no aeroporto, fazendo a última provocação para que o artista não retornasse a Cuba. O segundo, é que eles não puderam ter contato direto com o compositor cubano porque o aeroporto estava sitiado; o indecoroso Alberto Fujimori acabara de dar um golpe de estado no Peru; ninguém entrava, ninguém saia. O compositor chegou a receber acenos pelas vidraças, mas logo em seguida embarcou no vôo da Aeroflot, direto para Havana. Recordando-me dessa história, e vendo a situação dos atletas cubanos no Pan do Rio, fico com a impressão de que coisas semelhantes e bem mais cabeludas devem ter se passado na Vila Pan-americana.