A Biblioteca de Paracuru
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 09 de Agosto de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Bonitas como são as praias de Paracuru e agradável como é o município ornamentado por elas, nada mais justo do que o fato de aquele lugar abrigar uma das nossas mais admiráveis e inovadoras idéias de ação cultural, que é o funcionamento da Biblioteca Pública na praça principal da cidade. O prédio é modesto e tem medidas humanas. Os livros ficam perto das pessoas. Não é preciso de escadas para alcançá-los, pois as estantes são baixas. As atendentes demonstram orgulho com o que fazem. Tudo é grandiosamente simples.
Da última vez que visitei a Biblioteca de Paracuru, e isso foi há poucos dias, aproveitei para sentar em um banco da praça e contemplar aquela maravilha. Atrás de mim, estava a igreja reformada com seus vitrais coloridos; na rua ao lado, o prédio da prefeitura e a cadeia. Do ponto de vista arquitetônico em nada se parece, mas a composição de poder daquele ambiente construído remonta aos símbolos das praças de armas herdadas da cultura ibérica e muito presente nas cidades da América hispânica.
Em visão axial continuei observando o mar ao fundo, os currais de peixe, as jangadas, o coqueiral e a linha do horizonte. Cada imagem com sua grandeza, seu significado, sua força. A vivacidade da pequena biblioteca não permite que ela se mostre pelo que lhe falta, mas pelo que representa e inspira. Situada em plena praça, como espaço de celebrações, ela abre de segunda a sábado, das oito horas da manhã às oito horas da noite, sem fechar ao meio-dia para a sesta, como faz o comércio da cidade para o descanso após o almoço.
Antonio Sales (1868 – 1940), poeta e escritor paracuruense, idealizador da Padaria Espiritual, movimento literário modernista cearense, que antecedeu em quatro décadas o movimento paulista de 1922, já defendia no final do século XIX que as bibliotecas deveriam ter horários mais flexíveis. No artigo 32 dos estatutos da Padaria Espiritual, publicados em 30 de maio de 1892, essa tese é clara: “A Padaria representará ao Governo do Estado contra o atual horário da Biblioteca Pública e indicará um outro mais consoante às necessidades dos famintos de idéias”. Reivindicação que, de certo modo, tem sido atendida pela Biblioteca Municipal de Paracuru.
Prestando atenção a cada um desses detalhes e agrupando-os em um único cenário de múltiplas informações, a Biblioteca de Paracuru ganhou para mim a conotação de grande biblioteca. Pouco importa se ela não tem a fachada majestosa da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, nem o tamanho da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Tampouco se não se compara ao prédio da Biblioteca Pública de Fortaleza e muito menos ao acervo da Biblioteca do Congresso de Washington, a maior do mundo, ou a sofisticação arquitetônica da Bibliotheca Alexandrina, que renova o mito da lendária Biblioteca de Alexandria, no Egito.
Exageros de comparação à parte, a Biblioteca de Paracuru talvez não tenha o tamanho de si mesma; talvez seja do tamanho da praça ou tenha as dimensões do mar. É irrelevante nessas horas pensar se o prédio é grande ou pequeno, se os seus títulos são muitos, se são raros, se foram caros ou baratos. Isso não é medida para uma biblioteca que manifesta valores elevados pelo simples fato de existir quase ingenuamente como uma criança que ensaia a vida brincando na praça. No mar, os pescadores, os desportistas náuticos, os trabalhadores da plataforma da Petrobrás seguem o balanço das ondas, enquanto na biblioteca os leitores surfam e mergulham na agitação dos livros.
A biblioteca na paisagem da praça parece dar mais impulso a imaginação. Nesse espaço comunitário de expansão as crianças e os adultos que freqüentam a biblioteca podem reinventar o mar. Quando desejam levar a sala de leitura para casa, os moradores da cidade e os veranistas contumazes se cadastram e tomam livros emprestados para devolução em uma semana. Os turistas lêem no local. A biblioteca virou ponto de visitação. Mas ninguém vai ali para fazer fotos de leões de mármore, como muitos que procuram à Biblioteca de Nova Iorque. Em Paracuru, os turistas querem apenas experienciar a leitura de praça, como parte das belezas da vida cultural da cidade.
A Biblioteca de Paracuru é um símbolo da vontade de ler em um país taxado insistentemente como de não-leitores. É uma prova de que tendo acesso aos livros as pessoas lêem. As estatísticas demonstram que no Brasil 73% dos livros estão nas mãos de apenas 16% da população. Por isso, essa aproximação com a população é pedagógica. Localizada em uma praça marcada pelas histórias do carnaval mela-mela, a Biblioteca de Paracuru anuncia para a população que ler é um valor. Essa biblioteca é uma porta da praça que se abre para dentro dos livros, criando hábitos de leitura e instigando o desejo de explorar, natural dos seres humanos.
Ao invés de programação cultural, a Biblioteca de Paracuru tem a praça, com pipoqueiros, banca de revista, bancos para conversar e muita área livre para manifestações públicas. A praça de Paracuru não é mais livre do que as outras, mas nela há espaço para vadiar em livros, sem a pressão das relações de mais-vendidos. O freqüentador da Biblioteca Municipal de Paracuru não é um consumidor de best-sellers, não tem o perfil dos buscadores de auto-ajuda e exoterismos. Entra na biblioteca para ler, para se apropriar dos conteúdos dos seus livros e não para fazer compras.
É curioso ver as pessoas entrando na biblioteca como se pegassem uma passagem secreta da praça para os livros. Naquele pequeno recanto, elas estabelecem comunicação com outras vidas, outros mundos, outros tempos; podendo se encontrar com escritores de várias épocas e lugares diferentes. Quantas garrafas ao mar terão chegado ao destino por meio daqueles livros? A leitura é um encontro que fazemos com a nossa biblioteca interior; é uma maneira de fazermos novas descobertas e de reescrevermos as nossas vidas.
O fato de a biblioteca estar integrada à praça principal da cidade certamente tem chamado a atenção de muitas pessoas que nunca tinham sido atraídas a entrar em uma biblioteca. Quando existem nas cidades do interior, as bibliotecas são normalmente escondidas, fora das rotas do cotidiano. A biblioteca enseja sempre uma promessa, uma reticência, uma linha do horizonte. Por terem sempre algo a nos dizer, os livros produzem questionamentos e visões, que se revelam em nossas próprias dúvidas e afirmações.
Os freqüentadores da praça podem mudar, mas a Biblioteca de Paracuru é fixa, permanente. Sua representação é diferente da mítica circense. Quando menino, assim como inúmeras outras crianças, eu também quis fugir com o circo. Queria seguir os rastros da fantasia que me cativava. Depois, aprendi que com os livros, podemos fugir com a história e nos encontrar conosco mesmos em qualquer lugar do mundo. Assim é a Biblioteca de Paracuru em seu interstício entre a literatura e o mar.
Companheiros de viagem dos leitores, os livros do acervo dessa biblioteca apresentam nas próprias páginas o testemunho de que são manuseados, lidos e que estão cumprindo o seu papel de se desgastar nas mãos dos leitores. Pelo visto, a Biblioteca de Paracuru está tornando a leitura uma prática constante e enriquecedora da vida cultural da cidade. É uma obra oportuna e audaciosa. Mostra que Paracuru é uma cidade desperta, que está disposta a se fazer e refazer de momento em momento.