Poder local e cultura
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 06 de Setembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A valorização da diversidade cultural e natural, como premissa para o desenvolvimento com eqüidade social e preservação ambiental torna-se a cada dia mais urgente e necessária à recomposição do equilíbrio planetário. Confundindo-se com uma maneira espontânea de pensar, a representação da homogeneidade chamou para si o comando dos desejos e, com isso, empurrou a consciência crítica global a um vertiginoso estágio de empobrecimento.
Contudo, numa combinação de pulsão de vida, instinto de sobrevivência e de respeito à dignidade humana, surgiram reações de afirmação do local e do regional por todo o mundo. Tem sido crescente o despertar para o fato de que mesmo a mais espetacular das inovações tecnológicas só tem sentido se tiver conteúdo. E ativo intelectual é uma prerrogativa dos seres humanos, das culturas. Essa constatação resultou em apressados apelos na utilização de motivos multiculturais em objetos funcionais, na moda e no lazer, como busca de distinção dos produtos e serviços despersonalizados e destituídos de emoções genuínas.
A importância do poder local, como capacidade de catálise dos diversos segmentos sociais em torno do interesse comum para decisões a respeito do que mexe com a vida de cada lugar, tem sido reconhecida praticamente em todos os fóruns internacionais. Os governos municipais passaram a ganhar competências importantes por serem locais, mas ainda carecem de uma consistente preparação cultural para isso.
Está cada vez mais claro que o avanço da superficialidade sobre o essencial é resultado lógico de um sistema complexo de condicionamento político, mas também da falta de voz com sotaque local nas instâncias decisórias. O predomínio do silêncio, da influência negativa do sentimento de “quem cala consente”, requer a intensificação do debate sobre a valorização da diversidade cultural, como chave para as ações de desenvolvimento. No processo de criação de condições para a fertilização do poder local, nota-se ainda a dimensão cultural subordinada às questões técnicas, políticas e negociais, quando se trata do estabelecimento da co-responsabilidade comunitária.
É certo que ainda engatinhamos na construção de um processo democrático no qual os atos de governo se desenvolvam com transparência, sob o controle da opinião pública. Mais que isso, que o Regime Democrático seja consolidado através do fortalecimento das instituições públicas. Particularidades do Estado Democrático de Direito, como liberdade, respeito aos direitos sociais e individuais, previsibilidade e igualdade perante a lei, ainda sofrem os efeitos cotidianos da diátese social de uma minoria de privilegiados, sesmeiros de feudos econômicos, políticos, judiciários, técnicos, burocráticos, científicos, artísticos e acadêmicos, incapaz de assumir as responsabilidades públicas características de uma elite.
Ainda é pífia a força dos brasileiros conscientes e dispostos a compreender os valores plurais da brasilidade, a ponto de influir de forma decente e consistente na formação do País. O que prepondera na problemática dos grupos que fazem às vezes de elite no Brasil é uma menoridade kantiana, mista de covardia com ignorância, modelada na mentalidade de colonizado. Tomando emprestado o raciocínio do filósofo italiano Norberto Bobbio (1909 – 2004) diria que ainda temos muito o que superar nos três disfarces do que ele chama de poder invisível: 1) o que é dirigido contra o Estado; 2) o que se organiza para assaltar o Estado; e 3) o que dentro do Estado se institui como serviço secreto não controlado pelos cidadãos.
Quando observamos economistas cedendo lugar a cientistas políticos nos debates das televisões e nas páginas dos jornais é sinal de que existe uma inclinação para outra ordem em fase de estabelecimento e um espaço de discussão para novas relações entre Estado, sociedade civil e mercado. O recuo da figura do economista como o senhor do destino é uma conquista social de grande significado. Demonstra que nem tudo é mercado e que nem todos estão dispostos a continuar se fazendo de morto. O avanço dessas mudanças de olhares tende a evoluir para a participação de representantes dos setores culturais no debate político. Caso se confirme essa intensificação, o fim e o princípio da vida em sociedade começará a influir na modelagem do futuro por meio da cultura, como parâmetro da capacidade realizadora dos seres humanos, aplicada à gestão da vida individual e coletiva.
Muniz Sodré, citando o historiador Samuel P. Huntington, chama a atenção para a hipótese de que no futuro “os conflitos internacionais não serão essencialmente baseados em ideologia ou em economia, mas em cultura”. Quando nos anos 1950 o Tibet foi invadido pela China, o líder político e espiritual tibetano, Dalai Lama, chegou a aceitar o controle político e militar do seu país, desde que a cultura fosse preservada. A sabedoria dessa decisão revela que somente a preservação da cultura é capaz de manter a possibilidade de uma gente de sonhar com a libertação.
A negociação de soberania com base em valores essenciais dos povos certamente envolverá nações e grupos pertencentes a civilizações distintas e produzirá novos reagrupamentos geopolíticos mundiais. Nessa abordagem de mediações simbólicas (língua, artes, leis, literatura, costumes, lendas, tecnologias, modos de pensar), Sodré distingue cultura de civilização pela amplitude do nível de identificação do sujeito. Cultura é uma combinação estética e política, marcada por jogos existenciais psicológicos, lógicos, místicos, lingüísticos, somáticos e arquetípicos, por meio dos quais os grupos sociais se relacionam com a realidade. Civilização é o tipo de sociedade que deriva da amálgama dos elementos culturais materiais e imateriais.
Entretanto, para quem reduz a complexidade do mundo a simples espaços de concorrência das grandes corporações econômicas e financeiras transnacionais, os desejos de emancipação dos povos nunca deveriam ir além da possibilidade de ser cópia dos padrões de desenvolvimento impostos desde a derrota histórica colonial que fundou o primeiro sentido de globalização no século XVI. É o que encontramos em teses como exposta no livro “O mundo é plano”, do colunista Thomas L. Friedman, do jornal The New York Times.
Ao relatar sua visita a uma das “pérolas do mundo da tecnologia” instalada no continente asiático Friedman é categórico em seu preconceito: “Na estrada esburacada, havíamos disputado o espaço com vacas sagradas, carroças puxadas por cavalos e riquixás motorizados; depois que cruzamos os portões da Infosys, porém, parecia que havíamos entrado num outro mundo (…) Jovens engenheiros e engenheiras indianos andam animadamente de um prédio para o outro, de crachá pendurado no peito. Um deles tinha cara de quem poderia preparar a minha declaração de imposto de renda”, arrota em seu best seller.
Preso a essa velha estratégia de dominação, Friedman evidencia que não tem olhos para ver nada que valha a pena na vida hindu, sobre a qual foi obrigado a tropeçar enquanto se dirigia a uma das ilhas da indústria indiana de terceirização. E por isso, por só ter olhos para ver apenas as ilhas de exceção da competitividade global, deduz e propaga que o mundo está achatado, aplainado, reduzindo parâmetros civilizatórios a comunidades virtuais de trabalho.