A noção de que o verdadeiro sentido de possuir algo está associado ao usufruto que esse algo pode oferecer altera-se com as novas configurações de negócios e comportamentos sociais. Empresas de transporte não necessitam mais possuir veículos para serem líderes de mercado, e pessoas que escutam música não precisam mais ter estantes para guardar álbuns de suas preferências.
Na perspectiva plena do desfrutar, o caráter tradicional de propriedade perde força. Em muitas circunstâncias, ficou mais cômodo possuir sem ter a posse. Com a ampliação da expectativa do tempo de vida da população mundial, a ascensão ao lazer e a busca pelo tempo de convívio perdido são traços mestres no desenho de sociedade que vem se esboçando.
Não arriscaria dizer que se trata de um modelo social nascente, mas torna-se cada vez mais comum a disposição de muita gente de não mais abrir mão do usufruto do acesso em troca da ânsia de possuir coisas, muitas delas dispensáveis. A ambição flui e reflui em vendavais contraditórios. Até as padronizações definidas secularmente para os dias considerados úteis estão sendo questionadas para a saúde social.
Por outro lado, o tempo livre, aprisionado em apelos por descanso e recuperação semanal, já não parece mais tão inútil. As tradicionais horas vagas passam a ter substância social e cultural na compreensão de muita gente. A escala do olhar não é mais a mesma nesse tipo de realidade expandida. Os antes dias inúteis passam a ser um importante ativo com as possibilidades criadas pelo senso de possuir sem ter.
A alteração nos sinais de diferenciação social tem também o seu lado caricatural. Outro dia, em um shopping de Fortaleza, testemunhei cena curiosa que exemplifica um dos aspectos dilemáticos entre o acessar e ter. Um cantor de uma certa banda estava em uma loja provando diferentes roupas, o que seria normal, não fosse o fato de ele postar nas redes sociais as fotos de cada roupa provada, como material de divulgação de show.
O embaraço da decisão entre possuir e acessar vai além do faz-de-conta dos selfies. Ele se dá nesse dilema, mais profundamente na opção entre o egoísmo e o holismo. A presunção do exclusivismo patrimonial perde, neste raciocínio, espaço para visões da complementaridade feita de diferenças, ainda que não altere necessariamente as relações de poder.
No artigo “Acessar é melhor do que ter”, que escrevi sobre esse tema no Vida & Arte (23/06/2002), quando a minha coluna era publicada aos domingos, expus a minha convicção de que na nossa navegação errática em busca da felicidade levam-se muitos sustos na tentativa de passar no teste da realidade. Enxergar longe é um exercício trabalhoso para quem vive o comodismo de pupila dilatada da sociedade do efêmero.
Flexibilizar a ambição da posse é um exercício interessante para os tempos atuais. Em “De uns tempos para cá”, Chico César sentencia que “coisas são só coisas / servem só pra tropeçar / têm seu brilho no começo / mas se viro pelo avesso / são fardos pra carregar”. Acumular perde aqui a razão do sacrifício dos momentos de carinho e afeto feito em nome das coisas para ter. Para ser proprietário do que se mais gosta de fazer e admirar no mundo atual a opção mais tentadora é entender que possuir é mais do que ter.