O que é mesmo uma família?
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 29 de Novembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
No emaranhado de redes que configuram as relações sociais polinucleares dos novos tempos, a busca por uma lógica no caos passa pela definição nítida do que é mesmo uma família hoje. A família passou de núcleo fechado do sistema social vigente até meados do século passado para uma situação nodal irrompida por arranjos e improvisos decorrentes de um sem-número de transformações ocorridas no mundo contemporâneo. O que se fundamentava basicamente em laços de sangue cedeu espaço também para vínculos de caráter essencialmente afetivos.
A construção de uma coalizão de múltiplas comunidades para a conquista do equilíbrio social carece da família. Sem ela não há como pensar em moral e segurança, nem em motivos plenos de felicidade. Somente os corações atentos para amar oferecem estímulos e obrigações capazes de levar as pessoas a viverem com sentido. A falta de compreensão dos atributos nodais da família, ou seja, das suas características como ponto de articulação da teia que mais tem ligações no entrelaçamento das relações sociais, tem inibido sua força integradora em uma realidade fragmentária.
Muito do que tem acontecido de desequilíbrio no mundo decorre da ausência do senso da presença familiar na vida das pessoas e no que seria a sua ação coesiva sobre o cotidiano e na formação do sentido de destino. Essa perturbação se dá por falta do entendimento de que, por ter mudado de configuração sem uma devida reorganização da consciência do novo modelo, a família parece ter esgotado o seu papel de instituição essencial da sociedade.
Tivéssemos a oportunidade de clarear o que quer dizer família, no atual contexto, certamente nos sentiríamos mais estáveis e mais serenos. O desafio dessa descoberta é urgente. Entender que a família não se acabou e que há todo um universo de possibilidades no traçado supostamente desordenado de sua órbita requer disposição para tornar a nova experiência digna do seu aprendizado histórico.
Somos uma sociedade relacional, na qual os indivíduos se reconhecem pelos nexos que estabelecem uns com os outros. A percepção de que existe família é, portanto, um bem social de grande valor. Está mais do que na hora de intensificarmos o debate a respeito desse assunto, de maneira a reduzir as cobranças infrutíferas e muitas vezes cáusticas sobre o que não lhe é compatível. Os falsos juízos atribuídos à família são conseqüência da condição de abandono a que ela está submetida.
A experiência familiar precisa ser entendida como algo bem além da questão dos filhos-de-sangue e dos legados patrimoniais. O casamento, por exemplo, continua como um nó importante, mas em malha conjugal tecida também por uniões afetivas estáveis, independente de sexo e de capacidade reprodutiva. A paternidade e a maternidade já não se resumem à identificação de características genéticas, o que acaba com a figura do filho ilegítimo e dá autenticidade parental a pais e filhos em situação adotiva.
Está tramitando na Câmara Federal o Projeto de Lei, nº 2.285/07, de autoria do deputado baiano Sérgio Barradas, que propõe uma completa atualização do nosso sistema de direito da família. Ações dessa natureza merecem ser debatidas de forma ampla, por se tratarem de esforços de contemplação dos mais diversos desenhos de famílias conjugais e parentais existentes no mundo de hoje e que precisam de amparo legal.
Com todas as mudanças no padrão de comportamento social não há mais motivo para a família ficar pagando o preço alto que paga por seus conceitos tradicionais. O poder do amor de cartório não tem mais razão para ser preservado diante do que pode ser visto como um amadurecimento das pessoas, especialmente no que diz respeito às interpretações jurídicas de casos envolvendo problemas de ordem sexual. O espírito da lei recomenda que o compromisso conjugal tenha como prioridade os envolvidos e comprometidos nas relações familiares de modo a não afetar compulsoriamente o sentido de família.
A aplicação do senso de responsabilidade e não do jogo sentimental na mediação das crises conjugais contribui para que a família tenha uma influência positiva na estabilidade do bem-estar individual e coletivo. É a família que irradia a noção de afeto e de compartilhamento para as demais instâncias de experimentação social. As chamadas competências familiares, tais como os cuidados com a nutrição, vacinação e sociabilidade das crianças, podem ser assumidas por diferentes formatos de amparo civil.
A diversidade de fontes formadoras do conhecimento é também uma multiplicadora de perspectivas. As pessoas participam de blocos de carnaval, associações profissionais, torcidas organizadas, comunidades virtuais, enfim, de grupos de afinidades e relações interpessoais. Por ser transversal a todos eles a família é o principal ponto de dinamização do pertencimento na experiência da vida. Seja de que forma ela for constituída, ao se sentirem de dentro, seus membros têm mais possibilidades de desenvolverem equilíbrio físico, psicológico, moral, cultural e social.
Pensar a complexidade da família em um mundo complexo é uma tarefa urgentíssima. Sem o apuramento dessa percepção as saídas em busca da felicidade tendem a seguir recorrendo ao que há de violento no primitivismo da sobrevivência, enquanto decompõe-se a autoridade dos absolutos. Os agentes religiosos, políticos, econômicos e da comunicação de massa já não dão conta sozinhos das referências de verdade estabelecidas por suas esferas de poder.
A escola está confusa. A prática educativa, como objeto pedagógico, já não é o único, talvez nem o principal papel exigido pelo mercado do ensino. Ao mesmo tempo muitos educadores procuram levar a pedagogia a práticas integradas que vão além da docência. Mesmo com a dimensão multirreferencial do fenômeno educativo, desconfio que as novas necessidades educacionais somente serão ajustadas ao tempo presente quando forem formuladas a partir da compreensão atual de família.
Obrigados a conviver com insuficiências caracterizadas pela dispersão própria do relativismo, as estruturas sociais não têm como sair da crise que enfrentam se não for resolvida a questão da família. A família é um dínamo de geração permanente de valores ancorados na ética universal. Destituída desse significado, o que pode ser riqueza e beleza da sua função nodal acaba caindo na mediocridade. Isso reforça a necessidade de clarearmos a idéia do que seja família hoje, de sorte que a sua coerência com o viver contribua para ela ser acreditada e respeitada.
A família do século XXI precisa conviver com as mais diversas formas de separação postas a todo instante pelo viver contemporâneo. O sentido de separação aqui não é o de fissura do um-para-um-lado e outro-para-o-outro, mas o de trânsito, de movimento como estado de circulação dos quereres e dos fazeres. O exercício constante da separação é o que produz a união nos tempos de hoje. A união, quando forçada pela acepção original de família, sim, ganhou o sentido de rompimento, de separação.
O significado de união perdeu a rigidez. Ele não se restringe mais apenas a juntar, a ligar, quando se trata de vida familiar. No sistema nodal ele quer dizer também espalhar, conectar, distribuir. Compreendido assim, o principal papel da família hoje seria o de evitar a inércia das pessoas, o de fazer fluir o discernimento da autonomia com interdependência. Entendo o ponto familiar na teia da vida como uma espécie de mediação de autoridade e de guardiã da consciência, para o exercício simultâneo dos limites e da instigação à superação de fronteiras.