Olhares atentos sobre a cidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 06 de Dezembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Graças aos recursos digitais disponíveis é muito grande a facilidade com que se fotografa hoje em dia. No entanto, o desafio maior para a fotografia continua sendo o aprendizado do olhar. E, não tem jeito, olhar se aprende olhando. Ao promover o encontro de olhares de fotógrafos e artistas visuais na mostra DeVERcidade, o Instituto de Fotografia, Ifoto, presta um serviço de utilidade cultural ao criar as condições objetivas para as pessoas perceberem o quanto é importante documentar o cotidiano, experimentá-lo com o olhar, guardá-lo na memória e transformá-lo em perspectiva de futuro.
Fortaleza é uma cidade de excelentes fotógrafos. Nada mais justo que tenha partido da fotografia a atitude de animar essa incursão para o enriquecimento da qualidade do nosso olhar urbano, tão miserável em seu desconhecimento e desinteresse histórico, social e cultural. A mostra DeVERcidade, cuja terceira edição aconteceu na semana passada na praça do Mercado dos Pinhões, revela o quanto é possível estabelecer relações da arte com a cidade de forma criativa, integrada e com baixo custo.
As ruínas do velho supermercado desativado que ladeia a praça foram transformadas em galeria aberta, com instalações e painéis de imagens fixas e projetadas, criando uma metáfora visualizável de Fortaleza. A cidade vista pela criatividade que brota dos escombros, como as flores de seda, os pés de ciúme, que a limpeza da área felizmente preservou no local, com seus frutos ovalados e cheios de ar, suas flores brancas com pintas lilases e botões amarelos e suas sementes, que ganham mundo em plumas esvoaçantes para estarem sempre verdes nos lugares mais adversos.
Assim como a flor de seda, a vitalização da estética urbana ganha presença renovada nesse espaço privilegiado para a observação dos mais variados aspectos da dinâmica social e cultural fortalezense. Fotógrafos e artistas visuais capturaram imagens e as reuniram em um conjunto de interpretações do cotidiano da cidade, chamando a questão para si e ao mesmo tempo transbordando em um ambiente de expressão comunitária, que rompe com a mentalidade concentradora da ostentação.
Essa visão ampla da cidade traz uma importante contribuição ao jeito alternativo de animação cultural de alta eficiência participativa, tão necessária aos centros urbanos. As pessoas não receiam entrar naquele lugar porque se reconhecem na inusitada simplicidade de regeneração social. Em uma cidade, cujos espaços públicos foram vergonhosamente assaltados pela especulação imobiliária e pelo banditismo político, a mostra DeVERcidade revela que nem por isso o nosso amor por Fortaleza se acabou.
O gosto pela cidade e a vontade de ser co-responsável por ela dependem em muito da maneira como que as pessoas sentem os espaços públicos. Não apenas os ambientes físicos. A vista para o mar, por exemplo, também é um espaço público. Talvez por conta do exagerado desrespeito ao que é de todos, a Fortaleza das últimas décadas padeça tanto de ataraxia poética. Canta-se pouco, pinta-se pouco, dramatiza-se pouco a nossa cidade. O espírito dos lugares precisa inspirar e ser inspirado para ir além de si mesmo. A Praia de Iracema de Luiz Assumpção, o Pirambu de Chico da Silva, o Conjunto José Walter do grupo Fratura Exposta, o Bairro Ellery de Lauro Ruiz de Andrade, enfim, o imaginário de cada bairro precisa dos seus criadores sinceros.
Na mostra DeVERcidade a geografia humana e a paisagem urbana, retratadas pela unidade do múltiplo, denunciam a incompreensão dos usos dos espaços públicos, do desconhecimento do outro e do desconforto da nossa vida em comum. O estímulo ao hábito de olhar a cidade tem sua pedagogia cidadã. Ativa o encanto do viver em um lugar tão rico em diferenças, ao mesmo tempo em que desperta para o nosso pobre trato urbano, tão marcante em suas ausências de praças freqüentáveis, de arte urbana, de cuidado com as árvores em situação de rua e de integração urbanística entre os bairros.
Os trabalhos expostos entre ruínas da DeVERcidade convidam para que saiamos da indolência e, como a flor de seda, ousemos vicejar no baldio. Uma das funções da arte é a de não aceitação do estado das coisas. A instalação da mulher sob escombros, que tanto chamou a atenção dos visitantes, é uma ilustração perfeita do socorro que cada um de nós tem pedido entre os entulhos da Fortaleza sem calçadas, sem praças, sem áreas verdes, sem vista para o mar, sem vento e sem novas ruas que suportem os efeitos da construção desordenada de prédios e mais prédios. O monitor camuflado exibe um rosto no meio dos destroços, que de forma tropológica apela às pessoas com uma voz baixinha, quase constrangida: “Ei, tire-me daqui!”.
Quando olhamos o que os olhares diversos nos mostram, estamos na verdade aprendendo a optar entre o que interessa e o que não interessa. É aprendendo a olhar que exercitamos o orgulho de morar em uma cidade. A mostra do Ifoto é pontual e de pequena escala, mas é uma ação replicável e que poderia ser permanente. Há ruínas com flor de seda em toda parte de Fortaleza; desde os belos e solitários casarões do Jacarecanga às memoráveis fábricas de fiação do bairro das Damas. Alguns desses espaços têm tudo para serem animados com a reprodução de cliques, pinceladas, grafitadas e projeções audiovisuais.
A mostra DeVERcidade ganha amplitude cotidiana ao compatibilizar a necessidade de humanização da fotografia e das artes visuais com a necessidade de humanização da vida urbana. A realização do Ifoto fornece subsídios aos habitantes e visitantes de Fortaleza para que saiam do isolamento. A diversidade é aproximadora. Na quinta-feira passada, quando estive por lá, notei o quão é elástico o seu alcance. Naquela noite vi duas apresentações musicais, uma do exterior e outra do interior, conglutinando as pessoas em uma festa que terminou com ciranda fraternal.
Apresentados pela professora Leda Valdés, da Casa de Cultura de Havana, Yamilé, Enrique, Dayana e o maestro Carlos Yaumer, do grupo vocal Armonía Viva, cantaram temas cubanos e brasileiros em um recital de grande força afetiva. Eles vieram a Fortaleza a convite da prefeita Luizianne Lins que, ao participar de um encontro na capital cubana, foi abordada pelos quatro jovens, que ficaram admirados com o seu carisma e juventude. Esperaram na porta do hotel até conseguirem dizer a ela que queriam estabelecer um intercâmbio cultural entre Havana e Fortaleza. Luizianne topou e eles se sentiram em casa.
O encerramento do dia foi dignificado pela Banda Dona Zefinha, de Itapipoca. O grupo performático do interior cearense fez o espetáculo Zefinha vai à Feira, com o qual excursionou este ano por vários lugares do Brasil e do mundo. A banda, que se apresentou com Orlângelo Leal, Ângelo Márcio, Maninho, Vanildo Franco, Joélia Braga, Paulo Orlando, Wagner Ferreira e Gerson Samuel, está cada vez mais madura em sua proposta de materializar em sons e dramas o conceito de gambiarra, como efeito colateral da planificação econômica e do fundamentalismo tecnológico no mundo.
As apresentações dos grupos Armonía Viva e Dona Zefinha em uma mostra que trata de olhares sobre a cidade são exemplos de como Fortaleza pode se oferecer democraticamente. Somente tendo a oportunidade de perceber a complexidade do todo que constitui a formação de uma cidade, seus habitantes podem realmente ter idéia de como agirem dentro dela, dando mais organicidade à vida urbana. A mostra promovida pelo Ifoto afirma os acontecimentos, com intervenção criativa e mobilização cultural, ao contar várias histórias tendo Fortaleza como referência.