Só uma coisa me dá sensação de impotência diante de tudo de ruim que está acontecendo com o Brasil: a confusão que tem sido feita de que a cultura dominante corrupta, inepta e antirrepublicana instalada no país é a nossa cultura. Essa mistura traiçoeira de conceitos é o que mais dificulta que passemos a atos incisivos de reversão desse quadro, pois nada é mais paralisante do que ter dúvida daquilo de que não se é capaz.
O agravamento topológico da irrealidade nos tira a força de presença e nos distancia da vontade de transformar. Se não se fala na linguagem do que é edificante, seus significados desmoronam. E quando se escuta uma palavra que caiu em desuso, ela pode até não trazer mensagens que sejam entendidas, porém não nos chega como uma sonoridade qualquer; há sempre sinais por meio dos quais podemos descobrir sua intenção de significar.
A viagem de volta de Paul Singer (1932 – 2018), no dia 16 passado, suscitou muitas manifestações de admiração à integridade intelectual, pessoal, profissional e política desse contumaz defensor da radicalização da democracia como sinônimo de socialismo. Sempre o observei como um exemplo de cidadão orgânico, disposto a ouvir com serenidade as opiniões contrárias e a se manter firme em suas convicções de esquerdista não autoritário.
Na minha reverência de despedida ao professor Singer, reli o prefácio que ele generosamente fez para o meu livro Como braços de equilibristas (Edições UFC, 2001), no qual ele destaca uma “forma particularmente apta às esperanças e às angústias do fin de siècle”. Pensei sobre o que escrevo hoje e concluo que nesse já adiantado começo de século não tem sido diferente, e que acredito, cada vez mais, na potência da cultura não dominante.
Deixei as lembranças chegarem e me veio a apreciação de um quadro de Nice Firmeza (1921 – 2013) pendurado na parede da sala da casa de Paul Singer e Melanie, no dia em que a Andréa e eu desfrutamos de um jantar de confraternização com a família do casal em São Paulo. Aquela tela cheia de cores, de gente alegre e de luz tinha sido adquirida por eles em uma visita que fizemos ao Minimuzeu Firmeza, numa manhã de domingo em que comemos sapoti durante a agradável conversa com Nice e Estrigas (1919 – 2014).
A memória de Paul Singer simboliza essa simplicidade, a honradez, o labor e a crença de todos os economistas com senso de humanidade, educadores comprometidos com a emancipação social, intelectuais, pesquisadores e cientistas que não vivem à mercê dos interesses do mercado, enfim, um sem-número de pessoas imprescindíveis, que contribuem para dignificar a cultura brasileira e que não merecem ser identificadas com os patrocinadores da bandalheira que tomou conta do país.
A figura de Paul Singer conduz a esperança de tantos outros brasileiros que, como ele, nunca aceitaram e nem aceitam ser confundidos com os mandantes nem com os praticantes dos crimes culturais, sociais, políticos e econômicos cometidos contra o Brasil. Embora tenha nascido na Áustria, ele foi brasileiro desde os oito anos de idade, quando chegou ao país com a mãe, fugindo do nazismo. Aqui, se tornou um pensador e um ativista da economia solidária, da agricultura familiar, do cooperativismo e outras formas de tornar a vida social justa e humanizada.