Entre natais e anos novos
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 27 de Dezembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Na medida da memória está o valor da vida. A gente só lembra do que reconhece que existiu. Não é à toa que o escritor colombiano Gabriel García Márques diz que a vida não é a que a gente vive, e sim a que a gente recorda e como a recorda. O poeta chileno Pablo Neruda (1904 – 1873) também contava que sua vida era feita de todas as vidas que se relacionavam no mundo dos seus escritos. A forma de praticar a recordação é o que me parece mais ao alcance de cada um de nós.
Tenho procurado lembrar de tudo o que tem significado para a minha vida. Não para reviver o passado, mas para seguir avançando no tempo e me sentir respaldado por uma existência. O mais incrível nesses momentos de encontro comigo mesmo é que, além de se projetarem no futuro, as imagens das coisas mais simples são as que me chegam com mais força e beleza. Nessas horas, sinto-me como o personagem da música “Leva eu Sodade” (Alventino Cavalcanti / Tião Neto), que fitava a água das bacias nas noites de festa “que é pra ver se para o ano / meu amor ainda me via”.
Inspirado nessa bela contraversão poética do tempo compartilho a seguir cinco lembranças que me engrandeceram na vida, entre natais e anos novos. Acredito que a plenitude humana está sedimentada nas situações de encantamento que se desenrolam no cotidiano. Dos feitos extraordinários aos fatos mais simples e corriqueiros, a escala das nossas lembranças é que determina a importância que damos às nossas vidas.
De moto na ladeira
Das coisas que eu mais gostava de fazer com o meu pai, passear de motocicleta era uma das favoritas. Menos quando a gente ia para o Belém em dia de chuva, como aconteceu em certo final de ano. O Belém é uma localidade na divisa dos municípios de Independência e Tauá, onde meu pai tinha uma pequena propriedade chamada Poço Comprido. O trajeto da cidade até a casinha de taipa, onde chegamos a morar por um tempo, era de uns trinta quilômetros. Nada demais, se no meio do caminho não tivesse uma ladeira e uma deslizante passagem de massapê.
A ladeira me dava medo. O penhasco era respeitável e a estrada parecia muito estreita. O medo era compensado pela segurança que eu sempre tive ao lado dos meus pais. Os braços da minha mãe me abraçavam para confirmar isso. Mas na minha cabeça um estranho coro de vozes negras avivava a minha apreensão: “Ô leva eu / minha saudade / eu também quero ir / minha saudade / quando chego na ladeira tenho medo de cair / leva eu / minha saudade”. Era Nilo Amaro e os Cantores de Ébano, com o baixo profundo de Noriel Arantes. A chuva, a lama, o barulho da moto, a toada puxada do baião e aquela aventura com os meus pais ficaram em mim, me ajudando a fazer do medo uma oportunidade de descobertas.
Seresta de inocência
Por mais modesto que fosse, o Papai Noel sempre deixava um presente embaixo da minha rede a cada natal. Um dia, ao acordar e tatear o chão com as mãos à procura da lembrancinha do aniversário de Jesus, percebi que tinha ganhado um brinquedo muito especial. Era um violãozinho amarelo, desses que vendem nas feiras, com cordas de náilon e desenhos ornamentais. Não me contive e acordei todos em casa, cantarolando “Meu violão, meu amigo”.
Os versos, da música “Meu Dilema” (Nelson Gonçalves), diferentemente do sentido original do que restou de uma separação, enalteciam a chegada de um grande companheiro que, por muitos motivos, nunca aprendi a tocar. Cheguei a estudar com o professor José Mário, no Conservatório Alberto Nepomuceno, e a arranhar algumas canções nas calçadas da rua Meton de Alencar, onde um grupo de amigas e amigos costumava se encontrar. Não aprendi a tocar, mas desde menino aquele pequeno violão toca por dentro de mim, me ajudando a compor e a cantar a vida.
A bola colorida
Logo que fui batizado, perdi os meus padrinhos. Eles tiveram que sair do sertão por perseguição política. Sabia que se chamavam Vasco e Osvaldina e que meus pais gostavam muito deles. Nada mais. Um dia eu estava brincando na sala da nossa casa, quando ouvi alguém bater na porta. Virei-me para ver quem era e no lugar de uma cabeça humana vi uma bola bem grande, como nunca vira. A porta lá de casa era daquelas que abriam uma bandinha na parte superior. O contraluz atrapalhava um pouco, mas eu conseguia ver que era uma bola colorida.
Fui ficando de joelhos para levantar quando a bola foi jogada em minha direção. Abracei-a com encanto. Era mesmo uma bola grande e colorida. Demorei um pouco para perceber que as visitas tinham entrado. Quando levantei o olhar uma voz carinhosa me perguntou: “Você é o Flávio?”. Balancei com a cabeça, confirmando que sim. No que a voz completou: “Pois me tome a benção que sou seu padrinho”. Talvez eu tivesse de cinco a seis anos de espera por aquele natal. E ele chegou com a silhueta da bola jogada para mim, me ajudando a compreender que uma parte da vida é feita de agradáveis surpresas.
Álbum de figurinhas
Os álbuns de figurinhas sempre me encantaram. Mesmo assim, na minha infância só consegui completar um deles, cujo exemplar tenho guardado comigo até hoje. É um álbum de Animais do Passado, com bichos extintos, seres estranhos, a luta pela sobrevivência e fósseis. Só tinha uma figura por página, que servia para ilustrar as informações sobre importantes animais pré-históricos.
A colagem das figurinhas era uma diversão em si. Misturava-se goma com água e no fogo brando a gente ia mexendo, mexendo, até fazer o grude. Passava-se o grude com os dedos no verso das figuras coloridas para, em seguida, colá-las nas páginas em preto e branco do álbum. Não lembro do ano, mas recordo da minha altivez ao mostrar o álbum completo aos meus amigos entre as barracas das festas de finais de ano. Um momento de conquista guardado em mim, me ajudando a ter paciência na colagem dos meus sonhos no álbum da realidade.
Cinema e cineminha
Natal bom aquele em que passei as férias em Fortaleza e fui ao cine São Luís com a Ticô ver um filme de animação do Mickey Mouse. A sala escura, o ritmo das imagens, a música, o humor, tudo era novo e espetacular para mim. Que presente maravilhoso. Entramos no cinema à tarde e saímos à noite. Parecia que o mundo tinha mudado de fuso. De dentro do carro ela me mostrava a vida noturna da capital, as prostitutas, os apanhadores de lixo, as vitrines fechadas…
Contei essa história para os meus filhos e para a mãe deles neste natal, quando resolvemos comemorar em casa a data atribuída ao nascimento de Jesus. Escolhemos alguns filmes divertidos e fizemos uma sessão de cineminha caseiro, com direito a guloseimas e cafunés. Depois que todos foram dormir fiquei compartilhando mentalmente aquela alegria com várias pessoas que poderiam estar conosco naquele momento. Fiz isso, enquanto dava por mim, me ajudando a observar meus filhos acreditando em Papai Noel e eu acreditando neles.