Cada um consegue amar como pode, e não necessariamente como quer. A vida não está fácil para quem ama, mas é preciso falar de amor. E é isso que está fazendo a companhia Barca dos Corações Partidos, com o espetáculo Auê, apresentado nos últimos dias de abril passado na Caixa Cultural Fortaleza, com direção de Duda Maia e produção da Sarau (RJ).
No elenco, um grupo de compositores, cantores, atores e dançarinos artisticamente complementares. Adrén Alves, Alfredo Del-Penho, Beto Lemos, Fábio Enriquez, Eduardo Rios, Renato Luciano, Ricca Barros e Rick de La Torre fazem no palco um exercício de potencialização de suas individualidades, a partir de composições autorais que desanuviam o amor despedaçado.
A múltipla bagagem cultural presente nesse espetáculo tem lastro no fato de que esses artistas são originários de diversos lugares do Brasil, inclusive o duende caririense, Beto Lemos, que saiu do pé da Chapada do Araripe para andejar luminosamente pelo mundo da arte brasileira. Em Auê, além de atuar, ele divide os arranjos e a direção musical com o carioca Alfredo Del-Penho.
A linguagem do corpo, suas intenções emotivas e interações amorosas, cuidadosamente trabalhadas por uma requintada direção de movimento, asseguram a força estética de Auê. Tanto quanto as palavras e os sons, a plateia escuta a fala dos gestos e as frases dos ritmos corporais, temperando e esgarçando as fibras dos sentimentos.
Em Auê, o ponto de partida é a chegada, a dramaturgia sob medida harmônica entre versos, melodias, passos e pulos, alcançando efeitos surpreendentes de expressão artística. Um sopro de autenticidade criadora cênica, musical e coreográfica, assemelhado a trabalhos da companhia Dona Zefinha e do Coral da UFC, na regência de Erwin Schrader.
A energia de Auê é radiante em seu despojamento como vontade de realização. A Barca dos Corações Partidos leva consigo o desafio da arte de robusta sensibilidade, precisão técnica e clareza temática, em uma conjuntura pouco favorável a obras de belezas livres. Nessa travessia, faz linda a combinação entre saudade, ciúme, paixão, dom, separação, solidão e outros elementos do amor.
O amor, como símbolo das manifestações de subjetividades unidas no todo, motiva sentimentos e emoções, dando fôlego ao tema em seus fragmentos. A arte é evocada por fora das barreiras geométricas das formas e por dentro da pele em frescor de suor, descrevendo pormenores fluidos e conexos, como na efusão criadora de Voa Borboleta (Eduardo Rios), quando mãos batem asas envolvendo o poeta, em um dos momentos mais líricos do espetáculo.
A intensidade do amar surge contraditoriamente no desejo de escapar da auto-anulação, em Doideira de Amor (Eduardo Rios). Em um romance de trovador, o poeta conversa com o próprio coração sobre a decisão de viver sem a amada. O coração diz que ele ficará livre do amor, mas andará perdido. O bardo, mesmo com receio de nunca mais voltar a se apaixonar, livra-se do amor absorvente, que tantas dificuldades cria para sua existência individual.
Em um jogo de fontes de desesperada delicadeza, Auê ora afirma, em Ali (Renato Luciano), que “No resto do peito/ O que sobrou do amor (…) Vai passar”, e ora diz que tudo isso Já Passou (Beto Lemos/ Geraldo Júnior): “Não, meu amor/ Não é nada demais”, que precisa apenas de um tempo para sentir a própria dor.