O primeiro pensamento que me passa pela cabeça quando vou ver um espetáculo infantil chega em forma de pergunta: O que esses artistas querem dizer às crianças com essa apresentação? A peça Sr. Ventilador, do Grupo Bagaceira, em exibição no Teatro Sesc Emiliano Queiroz, responde com propriedade a essa indagação e me instiga a refletir sobre os alcances de sua encenação.
O personagem Sr. Ventilador (Yuri Yamamoto) é funcionário atento e prestativo de uma empresa, e tem uma relação cooperativa com o colega de trabalho (Ricardo Tabosa). Se um está com sono, o outro serve café, e este, por sua vez, lubrifica as engrenagens do amigo, num vínculo estreito entre pessoa e equipamento.
A trama se dá em um contexto comportamental que cria possibilidades para, na plateia, a mente da criança interagir com a consciência e os sentimentos atribuídos ao objeto. O Sr. Ventilador está vivo e sabedor do que pode acontecer com ele e com os outros objetos da empresa, a partir da chegada incontrolável das novas tecnologias.
O Sr. Ventilador é um objeto, mas não necessariamente inerte. Se suas hélices giram tanto é porque de algum modo ele vive. Mesmo para a criança maiorzinha, que sabe que não é bem assim, o envolvimento com o enredo a torna aberta a aceitar a força intencional do papel que ele desempenha. Isso dota o objeto de independência do outro personagem e fortalece a relação de amizade entre eles.
A cultura da infância acolhe alegremente cenas de travessuras, como na que o Sr. Ventilador sopra papeis picados em direção ao rosto do amigo, perturbando seu lanche. Há nesses momentos uma cumplicidade que extrapola as explicações mecânicas de movimento e que faz com que, pela brincadeira, desapareçam as limitações voluntárias do objeto.
Nesse espetáculo sem palavras, o Bagaceira usa uma língua cômica ruidosa, inventada há séculos pelos palhaços de rua. Também merece realce nessa peça a fuga das premissas dos desejos, que levam à fantasia, para ofertar circunstâncias que permitem analogias, o que pressupõe curiosidades comparativas.
O Bagaceira respeita o público infantil e não apela para tititis, mimimis e tatatás para agradar. O repertório musical, entre composições de bandonéon e guitarra havaiana, está associado ao tema, ao espaço adulto revelado, a um lugar de trabalho e, por que não?, à brincadeira que escapa da rotina para a diversão entre gente e objeto.
O clímax da dramaturgia é o momento em que o Sr. Ventilador percebe que será desligado. A criança na plateia sente a tensão e não aceita o que presencia, pois vê naquele ato não apenas a intenção do homem de encerrar a contribuição do equipamento, nem simplesmente o esforço de consciência do equipamento para entender que chegou o seu dia de parar. O que comove a criança é o desplugar de uma afetividade que ela vinha testemunhando na relação entre os dois personagens.
Daí a perplexidade e a reação silenciosa desencadeadas por um senso comum da pureza moral. Ao ser desligado, o Sr. Ventilador, em vez de se dar conta de que não tinha domínio sobre si, sente o fato como se fosse morto pelo amigo, pois, na sociedade moderna, morto é tudo aquilo que deixa de ter atividade, funcionalidade, serventia. Assim, com leveza, o Bagaceira brinca com as crianças na fronteira entre o ego e o mundo exterior.