Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 31 de Janeiro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Ver o filme “Meu Nome não é Johnny”, do diretor paulista Mauro Lima, me deu uma estranha sensação de confiança no futuro. A obra conta como um jovem de boas condições econômicas e sociais se tornou vítima e conseguiu escapar da rede de operações do tráfico de drogas. Essa história sintetiza o drama contemporâneo sofrido por uma juventude envelhecida por um sistema consumista perverso, do qual só há uma saída: a de voltar a ser jovem.
Está faltando juventude na juventude e isso de certa forma me anima porque é um sinal apocalíptico de que mais dia, menos dia, voltaremos a contar com a maioria dos jovens na descoberta de caminhos mais encantadores para trilhar mundo e tempo afora. A rebeldia, o espírito poético, a vontade de mudar o mundo e a propensão à busca de novas e desafiadoras experiências são atributos próprios do percurso de transição para a vida adulta, aditivados por combustíveis orgânicos, emocionais e sociais.
O tom confessional predominante nos blogs indica que as pessoas não estão mais agüentando a indiferença vigente e a qualquer momento podem despertar para a importância de infringir as leis do fundamentalismo de mercado, que as reduz a meros consumidores. No tribunal, inspirado em fato real, o personagem vivido pelo ator Selton Mello, diz que seu nome é João e não Johnny, pois, por não ter fortaleza nem dinheiro na Suíça, não se considera um bandido.
Em artigo no jornal Folha de São Paulo (23/01/2008), intitulado “Confissões” o João da vida real se esquiva da própria história, argumentando que cocaína e ecstasy não são problemas tão graves, já que pior do que o mercado dessas drogas é a fome, a falta de água, as bebidas alcoólicas e a sociedade que não ”elege bons administradores dos nossos impostos”. Seu texto parece querer isentá-lo de qualquer acusação de caretice por ter tornado público que deixou de consumir drogas.
As confissões originais de João têm um quê de heroísmo nos relatos dos dias em que passou na prisão e no manicômio. Ele faz questão de dizer que não foi tão mole assim como muitos podem pensar. Fora do filme, sem a mediação do ator, ele procura proteger os consumidores de drogas, da acusação de financiar a violência nos centros urbanos. Chega a aludir que, ao colocar o confronto dos policiais com a passeata pela paz, feita com a participação de atravessadores de drogas, o filme “Tropa de Elite”, do cineasta carioca José Padilha, ajudou a levantar essa questão, mas que “foi de forma não intencional”.
Não é fácil largar uma compreensão, inspirada na pura ilusão, e partir para outro modo de vivenciar o fantástico do mundo real. O João de verdade afirma que não é mais consumidor nem traficante de drogas, mas demonstra que ainda precisa de um tempo para ter coragem suficiente para fugir do que elas representam em termos de vaidade. Precisa de uma chance de ser comum. Ele não um rompedor, é um sobrevivente. Por isso, demonstra dificuldade de sustentar o enredo da nova cadeia de acontecimentos em que se meteu.
O drama de “Meu nome não é Johnny” tem o mesmo clima do filme “Cazuza, o tempo não pára” (2004), da diretora carioca Sandra Werneck e do fotógrafo paraibano Walter Carvalho. Ambos envolvem a música e são inspirados em livros que revelam a história da ausência de limites, como expressão da falta de perspectivas da juventude e sua reação de egoísmo insurgente e lírico. João está na literatura pelas mãos de Guilherme Fiúza, e Cazuza (1958 – 1990) pela paixão da sua mãe Lucinha Araújo.
A figura do jovem irrefreável, incorporada por João e Cazuza, vem da década de 1950, do século passado, quando a indústria cinematográfica norte-americana lançou o filme “Juventude Transviada” (Nicholas Ray), projetando o ator James Dean (1931 – 1955) como símbolo da necessidade de aproveitamento máximo da vida na adolescência. O mundo acabara de sair da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e os jovens estavam sufocados em suas expectativas, sempre frustradas em um mundo essencialmente dominado pela lógica dos adultos. A vontade de romper com os padrões estabelecidos foi percebida como potencial de consumo e, nessa junção de interesses, iniciou-se uma indispensável e rica transgressão de valores.
James Dean tornou-se o modelo do jovem que arriscava a vida por uma boa diversão. Viver intensamente passou a ser o lema dos chamados rebeldes sem causa. Na música “Ideologia”, Cazuza reconhece que seus heróis morreram de overdose. Mesmo capturada pelos instrumentos da sociedade de massas, a juventude da juventude se manifestou em muitas conquistas nas décadas entre Dean e João. Mas o grande vencedor foi a ideologia do consumismo.
Com a utilização dramática e sensual do cigarro pelo cinema, moldando personagens e oferecendo-os ao mundo pelos encantos de atrizes e atores, tais como Marlene Dietrich, Rita Hayworth, Bette Davis, Clint Eeastwood, Robert Redford e Sharon Stone, a indústria cultural impôs um estilo de vida. O homem másculo de Marlboro, “ao sucesso com Hollywood” e “o importante é ter Charm” são alguns dos apelos desse que talvez seja o maior case de merchandising, de lobby e de advocacy da sociedade de consumo.
O filme “Meu nome não é Johnny” mostra que o pai de João (Giulio Lopes) era um cara muito legal, mas, como muitos da sua geração “cabeça”, foi derrotado pelo cigarro e os filhos ficaram na fantasmagoria da fumaça. Situação semelhante está acontecendo com as drogas mais pesadas. O que inicialmente era um símbolo de ruptura virou lugar-comum e os jovens não passam de consumidores de si mesmos, refugiados em raves e baladas, via de regra, articuladas com os comerciantes do mercado das drogas.
João, em seu artigo no jornal paulista, descarta qualquer possibilidade da sociedade contar com essa gente cheia da grana que financia o tráfico de drogas. “Alguém tem a ilusão de que o consumidor de drogas possa estar preocupado se está ou não alimentando a violência? Eu negociei com muita gente de elite. É pura festa”. Uma declaração dessas, feita por quem conhece o problema de perto, deveria ser mais aprofundada e discutida nas diversas instâncias sociais, principalmente aquelas que, querendo ou não, estão contribuindo para a acomodação da juventude.
“O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos”. Esta citação da escritora belga Marguerite Yourcenar (1903 – 1987), reproduzida no cartão de natal que a juíza (Cássia Kiss) do processo envia para João, guarda uma pista. Com ela, qualquer jovem que, diante do enfado da mesmice reinante, ainda estiver sentindo a latência da sua juventude, vai perceber que está em uma roubada.
“Meu nome não é Johnny” é uma obra de boa qualidade cinematográfica e social e precisa ser vista pelo maior número de adultos e adolescentes. Acredito que se os jovens escravizados na rede do tráfico tiverem a oportunidade de se enxergarem humilhados em seus ímpetos de transformação, eles sacudirão os padrões estabelecidos pelo mercado do efêmero e são capazes de inventar maneiras mais livres de construção da felicidade. O mundo está precisando dessa rebeldia.