O livro-imagem é uma categoria editorial das artes plásticas que, por seu caráter narrativo visual, se adequa bem ao universo da primeira infância. Nesse campo, a arquiteta e pedagoga paulistana Patrícia Auerbach tem se destacado com obras cativantes e de olhar sensível voltadas ao imaginário. Sua mais recente obra, A Garrafa (Brinque-Book, 2018), conta das peripécias de uma menininha, em cenas de adorável brincadeira solitária.
A personagem embarca em uma garrafa de água mineral e com ela transita em sua brincadeira. A maneira de atuar, e não o objeto, é o determinante do brinquedo. O que move a fotografia impressa da garrafa é o significado que ela adquire em cada representação imaginária da criança e suas infinitas possibilidades. Esse movimento e sentido ganham na textura do lápis de cera e em poucas cores os significantes do faz-de-conta e sua força de dar vida à realidade invisível.
Tenho uma atração especial por narrativas visuais. O único ponto que às vezes nessa forma plástica de contar me deixa com sensação de falta é quando o tema sugere a presença dos monólogos recatados, comuns na infância. É como se a história negasse ao leitor as afirmações próprias da personagem sobre cada variação do seu brincar. Isso não impede, evidentemente, que quem aprecia o movimento das imagens não possa falar sozinho.
Em situações imaginativas, como a da menininha do livro de Auerbach, é normal falar alto, deixar o pensamento brincante escapar, externar vocalmente a palavra aludida, gerando o que a ação não realiza por si própria. Assim como acontece na literatura voltada para crianças – quando o texto recorre à ilustração como estímulo à dinâmica do enredo –, os casos de narrativas visuais envolvendo o brincar sozinho poderiam ser também ilustrados com palavras.
De todo modo, o surpreendente no livro-imagem é como a experiência sensorial da personagem se desenvolve em seus impulsos de ver o que está inventando a cada instante, consciente do distanciamento com que atua. Não é a garrafa que determina a brincadeira – ela é meio –, mas o modo lúdico e particular da criança que faz a comunicação sem idiomas, conferindo à dinâmica das imagens a escolha dos vocábulos que as integram.
Patrícia Auerbach tem um estilo próprio e uma sensibilidade admirável para contar da relação da criança com o mundo, em cenas da prática imaginativa. O contato com o objeto, a liberdade inventiva e o devaneio autônomo da cultura da infância são extraídos de sua arte como novas substâncias projetivas em estado de materialidade.
No livro A Garrafa, entre tantos lances encantadores, há apenas um que identifico como deslocado do propósito. Logo na página sete, a menininha sentada sobre uma pilha de jornais, com a garrafa sobre as pernas, põe a mão no rosto como se questionasse o que é possível fazer com aquele objeto. Esse é um gesto de racionalidade que, a meu ver, poderia ser dispensado.
A imaginação não é chamada por quem imagina, ela vem por si e traz em sua bagagem o repertório ancestral do brincar associado à experiência concreta da criança. E isso a autora faz muito bem nas demais páginas, largando a personagem para que flua em seu devir, sem explicações, sem lógica de passagem, sem pontes e sem finalidade, deixando o brinquedo nascer do ato de brincar. Lindo.