A estética do pertencimento
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 06 de Março de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O aprendizado possibilitado pela ampliação da nossa interação no diálogo global tem alterado as características da noção de comunidade, tornando-a mais heterogênea e, conseqüentemente, mais passível de transtornos de irrealidade em seus traços culturais mais profundos. Essa maneira de compreender, de pensar e de sentir a questão reforça em mim a crença de que, acima de tudo, a idéia de pertencimento se retroalimenta na humanidade pela força do seu sentido estético.
Caso meu raciocínio esteja em linha com o que se pode chamar de certo, imagino que a urgente discussão sobre a reorganização da vida social contemporânea deve levar em conta que a essência do pertencimento é estética. Tomando a estética como ciência que estuda a sensação, procuro matricular a minha dedução no plano axiológico, de um valor em si, e não no de estabelecimento de preço com base em índices econômicos e sociais.
No jogo entre semelhança e estranhamento, praticado pela multiplicidade de visões culturais que constroem a própria visão do mundo, a concepção de lugar parece-me mais associada à de local de configuração de posições lógicas, enquanto que a de espaço sugere a existência de entroncamentos abertos a variáveis direções. Assim, a impressão subjetiva de uma origem comum se expressa no sentimento de religação das pessoas com os lugares e os espaços onde elas se realizam.
Em discurso de gratidão pelo recebimento do Título de Cidadão de Fortaleza, proferido na quinta-feira passada, na Câmara Municipal, o professor de direito e juiz do trabalho, Judicael Sudário de Pinho realça a importância de carregarmos conosco o nosso lugar, delimitando o indelimitável, em motivações particulares que fazem caminhos por significações universais. Dentre as inúmeras razões para amar a cidade que o acolheu, Judicael cita desde pintores a tapioqueiros, em forma de agradecimento, por considerar que a gratidão “é um modo de ser feliz”.
Ao evidenciar os vórtices da amizade e o enorme prazer de ser grato na sua trajetória biográfica, ele coloca a atmosfera de Fortaleza, como espaço que o faz se sentir definitivamente em casa, como sensação definidora do seu lugar: “O lugar que escolhi para mim, sem jamais esquecer de Várzea Alegre, de Campos Sales, de Quixeramobim e de Sobral. O lugar onde gastarei a minha existência, onde tudo faz sentido, onde o esforço guarda uma finalidade, onde o trabalho é fonte de prazer e de enriquecimento, onde consumo energia e tempo existencial para fazer algo que importe”.
O senso de pertencimento se dá mais amplamente quando a coexistência entre ponto de partida e de chegada é superada pela dinâmica das subjetividades geradoras da distinção e do sentimento comum, no universo de objetivações e seus sistemas de hábitos e conhecimentos. No conjunto das questões da dinâmica social, a estética precisa ser considerada, por seu alcance às estações mais intrínsecas de uma sociedade e de suas pretensões, embora dispersas nos nodos de uma multidão de sujeitos que abastecem o coletivo e ao mesmo tempo se apropriam particularmente dos valores e significados que produzem para nortear seus comportamentos.
Nenhum lugar existe para nós, sem que façamos parte dele e sem que ele faça parte de nós. Somos de todos os lugares e de todos os tempos cuja poesia nos atraia pelo magneto da sua força natural e cultural. O sentido de Ítaca, semeado nos versos épicos da Odisséia de Homero pela oralidade popular grega de dez mil anos atrás, ainda me emociona, mesmo depois de tantas versões, traduções, desgastes e revigorações do tempo.
A aventura de Ulisses (Odisseu) de volta à ilha de Ítaca transcende os contornos da mitologia: “Quando partires de regresso à Ítaca / deves orar por uma viagem longa, / plena de aventuras e de experiências. / Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros, / um Posêidon irado – não os temas, / jamais encontrarás tais coisas no caminho, / se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime / teu corpo toca e o espírito te habita. / Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros, Posêidon em fúria – nunca encontrarás, / se não é na tua alma que os transportes, / ou ela não os erguer perante ti.”
E a releitura do poeta grego Constantin Cavafis (1863 – 1933) segue transbordando em sutilezas a estética do pertencimento: “Deves orar por uma viagem longa. (…) Em colônias fenícias deverás deter-te para comprar mercadorias raras (…) E vais ver as cidades do Egito, / para aprenderes com os que sabem muito. / Terá sempre Ítaca no teu espírito, / que lá chegar é o teu destino último. / Mas não te apresses na viagem. / É melhor que ela dure muitos anos, / que sejas velho já ao ancorar na ilha, / rico do que foi teu pelo caminho, / e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. / Ítaca te deu essa viagem esplêndida”
Quando a sedução do pertencimento se dá por meio de uma plataforma estética, a perturbação de irrealidade, provocada pelas induções de homogenia, próprias da ideologia do consumismo, cede lugar e espaço ao livre arbítrio dos sentidos. Nessa dimensão, Ítaca, Independência e Fortaleza se confundem dentro de mim por onde eu vou. Sentir-se de um lugar é uma experiência interior de sucessivas interações e não uma maneira de habitar esse ou aquele local fixo, limitado ao perímetro de nossas ações.
Tocados pela estética do pertencimento podemos nos dar ao contentamento de aproximar do que somos o que é dos outros e de reorganizarmos distâncias, conforme a poética dos lugares, dos espaços e das gentes. De modo diferente ao da recepção de Ítaca, mas com a mesma sensação de dizer respeito, deparo-me comigo mesmo no efeito da leitura de Terra Bárbara do poeta cearense Jáder de Carvalho (1901 – 1985): “Na minha terra / as estradas são tortuosas e tristes / como o destino do seu povo errante. / Viajor, / se ardes em sede, / se acaso a noite te alcançou, / bate sem susto no primeiro pouso: / terás água fresca para a tua sede, / rede cheirosa para o teu sono. / Na minha terra, / o cangaceiro é leal e valente: / jura que vai matar e mata. / Jura que morre por alguém e morre”.
A estética do pertencimento não se baseia na polaridade dos valores binários, por não se restringir ao que é feio ou bonito na dimensão da beleza. Pertencer é ter e ser parte da alma de um lugar, na sua elasticidade afetiva e cultural. É pela estética que os versos de Jáder nos aproximam dos feitos heróicos dos aqueus: “Eu nasci nos tabuleiros mansos de Quixadá / e fui crescer nos canaviais do Cariri, / entre caboclos belicosos e ágeis. / Filho da gleba, fruto em sazão ao sol dos trópicos, / eu sou o índice do meu povo: / Se o homem é bom / eu o respeito. / Se gosta de mim / morro por ele. / Se, porque é forte, entendesse de humilhar-me, / ai, sertão! / eu viveria o teu drama selvagem, / ou te acordaria ao tropel do meu cavalo errante, / como antes te acordava ao choro da viola”.
Os lugares e os espaços aos quais pertencemos são os que nos pertencem por nossa capacidade de apreciá-los e de nos sentirmos afluentes das suas memórias. Quem sente essa condição pode mudar sem se exilar. O segredo da estética do pertencimento está na mobilidade do sentido de pertencer. O espaço de pertencimento não é um lugar acabado. Ele é âncora, cais, zona de manobra, onde nos formamos e formamos nossos mundos, descolados do ambiente imediato.
A estética do pertencimento está longe do pragmatismo da sobrevivência. Quando aprendemos a cultivá-la, abrem-se janelas, porteiras e links cibernéticos de grande satisfação em nossas vidas. Passamos a ir além dos tradicionais cinco sentidos, pois alcançamos a segurança de fazermos parte de uma cultura composta de fontes de prazer inesgotáveis, na qual, por dura, conflituosa que seja, a vida manifesta-se bela e provocante, na satisfação do existir.