Percepção social na nova infância
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 20 de Março de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Um grupo de dez estudantes, brasileiros e estrangeiros, do curso de Psicologia, da Pontifícia Universidade Católica, PUC, do Rio de Janeiro, produziu uma série de questionamentos sobre a situação da infância na atualidade, a partir do meu artigo “A publicidade fora do ar” (DN, 28/02/2008). A provocação foi feita pela professora Solange Jobim, psicóloga e escritora, que tem focado seu trabalho em Psicologia do Desenvolvimento Humano, sobretudo nos temas relativos à infância, juventude, linguagem, subjetividade, educação, mídia, cultura e conhecimento.
Percebo como muito oportuna essa troca de reflexões entre jovens universitários e a imprensa, considerando o caráter multidisciplinar indispensável na busca de luzes para a descoberta do novo lugar histórico e social da infância. No domingo passado, 16, o editorial deste Diário, intitulado “Temática abusiva”, ao problematizar a questão da violência em filmes, programas e jogos eletrônicos, reforçou a necessidade de atitudes proibitivas por parte da sociedade, quando o que estiver em jogo for “a preservação da integridade da mente ainda em formação, incapaz de se defender por si própria de certas capciosas armadilhas, potencialmente deformadoras da construção de sua personalidade”.
O processo de recontextualização da infância depende em muito da nossa capacidade de identificar os impactos desses meios nas respostas das crianças. Isso nos leva a pensar todo e qualquer aparato tecnológico, que temos maravilhosamente à nossa disposição, como recurso de expansão e de fronteira. Em sua argumentação, a estudante Simone Motta Rodrigues, defende que a sociedade deve procurar “avaliar as questões éticas da publicidade” e encontrar um modo de “poder pensar e ajudar as crianças a terem um critério de escolha”. Vê essa tarefa como um desafio contemporâneo, haja vista “que nós adultos muitas vezes somos também seduzidos e induzidos por produtos totalmente desnecessários”.
Simone tem razão, a relação da publicidade com a infância é extremamente desigual. Um lado sabe que está seduzindo e o outro participa do jogo sem conhecer as regras. Ao interagir, a criança produz informações que entrega abertamente seus desejos e necessidades. O que somos se constrói por fora e desde a infância passamos a procurar continuamente o que pensamos que somos. Eis o mistério da dimensão estruturante do sujeito e do Eu. Em linhas gerais dá para dizer que o sujeito é o que reage ao real, enquanto o Eu se organiza no imaginário, para dar forma a nossa essência.
A lógica do pensamento infantil se desenvolve no plano da verificação hipotética. Neste aspecto, a criança precisa ter a oportunidade de ampliar paulatinamente suas habilidades em suas descobertas. Thiago de Paula Dibley sugere uma maior participação ativa das crianças nessa discussão. Fabiana Martins Carrilho propõe, por sua vez, que essa mediação seja feita pelos pais, a partir do que é apresentado, tornando “a criança que está indefesa psiquicamente em relação aos comerciais, capaz de ser crítica e de fazer suas próprias escolhas”.
A ideologia do consumismo é instrumental, técnica e fria, na manipulação de emoções. Diante desse quadro, cabe à sociedade procurar sensibilizar a criança para que ela possa fazer uma leitura estética da realidade, desenvolvendo interesses a partir de referências nutridas na imaginação. Gabriela Torres não considera correto que programas inadequados sejam exibidos a qualquer hora do dia, mas acredita que uma boa educação possa favorecer o exercício do livre-arbítrio.
Meninos e meninas são mais sensíveis ao que lhes chega travestido de fantasia. Tendem a interpretar literalmente situações desconexas. Leituras e apropriações só dependem muitas vezes de que os códigos sejam decifráveis. A subjetividade da criança precisa ser respeitada em seu espaço de individualidade e em sua experiência sociocultural, a fim de que ela conviva com o mundo da aparência sem ser tragada pela apologia ao instantâneo. “Estamos ensinando as nossas crianças que a felicidade está dentro do objeto. Essa é a idéia do consumismo. Sem objeto, sem felicidade”, escreve certeira Elizabeth Ann Baker.
Não obstante à sua compreensão de que a doutrina do consumismo deva ter direito limitado, Pámela Escobar me acusa de insinuar “que os mercados têm mais influência sobre as crianças e sua educação do que os próprios pais”. Aduz que a influência da família não deve ser esquecida, especialmente considerando que a sociedade não tem um único grupo de valores. Ela reforça, e eu concordo, que se as crianças dependem dos pais para ter dinheiro e transporte, estes podem muito bem se fazer mais presentes na orientação do tipo de consumo que querem ensinar aos filhos.
Fernanda Bhering chama a atenção para a pouca valorização que tem sido dada à inclusão da classificação indicativa nas programações televisivas. “Faz pouco tempo que colocaram faixa etária adequada e mesmo assim há pais que as questionam”. E pensar que essa interferência é o resultado de grande empenho de parcela da sociedade civil organizada e do Ministério da Justiça. Fernanda gostaria que não precisássemos de leis reguladoras para exibição, mas, no estágio superior idealizado por ela, a publicidade abusiva também deixaria de existir por si. Na conjuntura atual, não vejo outra saída senão lutar para tirar do ar o que agride, ou, como ela diz, com a “punição aos responsáveis pelo sofrimento de alguém”, inclusive por métodos subliminares.
A situação é complicada porque a criança não está presa a um único contexto e sim a um alvo de múltiplos feixes de informações. Ela recebe um sem-número de enunciados, que processa de acordo com os seus contornos de ingenuidade, intuição, cognição, articulação social e cultural. “O que mais impressiona é a falta de ética e de responsabilidade civil destes profissionais”, dispara Maria Clara Cavaliere em direção aos publicitários que fazem peças abusivas voltadas para a infância. Se já é difícil colocar limites na educação dos filhos, na opinião de Maria Clara fica quase impossível fazê-lo, sob o fogo cruzado dessa máquina de “incutir falsos valores” e de manipulação do controle da autoridade dos pais.
Em um mundo alusivo, no qual uma situação lembra a outra, “não são apenas as crianças que estão vulneráveis, mas os adultos também”, lembra Letícia Rapp. Assim como os adultos, “as crianças de fato não são seres passivos diante da televisão”. O difícil é entender os protocolos de emissão e de recepção dessas mensagens, para entender como a criança decodifica o discurso dos comerciais e, como se dá o percurso contrário do seu pensamento, na condição de usuária compulsiva de tevê, jogos de celular e internet. Arena onde ela enfrenta modelos virtuais de composição do ser e de maneiras de agir.
Ao assimilar essas representações, a criança certamente projeta em si entendimentos para a sua ação em sociedade. Nem por isso, podemos cobrar dela discernimento e compromisso com qualquer lógica que não seja a das suas fontes de influência. Joaquim Francisco prefere ir além das iniciativas remediadoras na reversão desse cenário; pensa em prevenção educativa e em encontrar maneiras de mudar o sistema. Enquanto isso não é possível, ele segue favorável que a propaganda venda “seus produtos, desde que não interfira no processo de desenvolvimento de crianças”.
Essa troca de idéias com os alunos da professora Solange Jobim, sobre um tema tão apaixonante, como esse da percepção social da nova infância, me instiga a acreditar na intensificação da tendência de revalorização da criança e da imaginação, como base para a objetividade social multicomunitária dos tempos atuais.