A natureza em conto circense
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 03 de Abril de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O espetáculo circense tem mudado. As exigências da reinvenção da arte do picadeiro se aproximam da necessidade presente de reumanização, e já não exibem mais animais selvagens domesticados, nem engolidores de espadas. O circo contemporâneo trabalha com temas. Explora o ato fugaz da representação mantendo a atenção no que mais emociona. Se as pessoas estão despertando para a importância vital da preservação ambiental, como saída indispensável à viabilização do futuro, o assunto entra em pauta para na recuperação do encanto perdido.
O tema do Circo Nacional da China, apresentado em Fortaleza, no final de semana passado, foi a natureza. Em um cenário de floresta sonora, rico em particularidades, mas especialmente valioso no todo, como uma pintura de ângulos externos, uma menina com seu ursinho de pelúcia é guiada por uma árvore a seguir descrições coloridas da vida de animais e insetos que passam a narrativa uns aos outros e todos contam a história. O palco, como espaço não-natural, funciona como janela aberta para o mundo do conto fabuloso.
A ação da música, da imagem e da performance acrobática infunde o tempo da magia do espetáculo e chega ao espectador na plenitude de uma só manifestação, a arte circense. Cena por cena, desenrolam-se momentos sublimes de reconstituição do olhar para a natureza, com encenações de sapos, passarinhos, borboletas, formigas, papagaios, cachorros, macacos e libélulas, a ofertar exuberância a muitos de nós, que temos sido tão cruéis, displicentes e omissos diante da devastação da fauna e da flora planetária.
Quem na platéia esteve preparado para se iluminar pôde abraçar o sentimento arrebatador de que nossa vida só tem mesmo sentido quando moldada à grandeza natural. O cenário de inspiração ecológica guarda os encantos das brincadeiras de olho mágico, da visão 3-D, projetando sólidos e delicados acrobatas, bailarinos e contorcionistas, conduzidos pela música esvoaçante do eixo temporal do roteiro. O apuro milenar nos diz, com a sabedoria do olhar elástico dos antigos navegantes, que aplicar a técnica é preciso, mas fluir encantamento não é preciso. A trupe chinesa navega nesse jogo entre o exato e o inexato, na combinação entre a precisão técnica e a imprecisão da inventividade e da emoção.
O Circo Nacional da China é um instrumento de divulgação oficial da cultura chinesa que, nas últimas cinco décadas, passou a dar continuidade à milenar arte circense praticada pelo antigo Circo Imperial da China. Os mais de sessenta artistas que se apresentam na turnê que incluiu Fortaleza fazem parte de um amplo grupo formado por jovens escolhidos entre ginastas, esportistas, malabaristas e bailarinos que, a partir de cinco anos de idade passam por rígidos treinamentos para preparar o corpo e atingir o ponto máximo do equilíbrio. Do início ao fim, a fala de fascínio da natureza envolve a platéia com o que temos de universal em competência sonológica, plasticidade e trama literária.
Uma característica de grande relevo dessa apresentação é que ela está mais para poesia visual e sonora do que para espetáculo circense. A cenografia, realçada por luzes bem dirigidas e figurinos marcantes, transforma todo o nosso corpo em olhos e ouvidos atentos. Ao misturar dança, teatro e acrobacias, em sofisticadas coreografias, com recursos tecnológicos de som e iluminação, o Circo Nacional da China se coloca claramente entre os mais destacados empreendimentos do chamado “novo circo”, ao lado da companhia francesa Cirque Plume e da companhia canadense Cirque du Soleil.
O circo é uma criação popular da humanidade. Surgiu em vários lugares do mundo em circunstâncias muito próprias de cada sociedade e se desenvolveu com os mais variados conteúdos e formas. A arte circense é constituída por múltiplas maneiras de atrair platéias, quer seja nas ruas, em anfiteatros, dentro de lonas, em praças públicas ou em palcos privados. Registros de exposições de habilidades incomuns, de excentricidades, de atrações artísticas e de cortejos exóticos vinculados a honra e poder, aparecem em referências chinesas, egípcias, astecas, incas, gregas e de outras civilizações milenares, que deixaram vestígios de suas diversões e conquistas.
A experiência circense segue em transversal do tempo, permeada por trocas mundializadas, que vão de números ilusionistas a números de trapézio, passando por utilização de recursos lúdicos, como argolas e diabolôs. Circos, como o da Trupe Acrobática de Shenyang, como é também chamado o Circo Nacional da China, em alusão à cidade onde o grupo foi fundado, diferenciam-se dos circos tradicionais, não apenas pela eliminação de práticas pouco recomendadas politicamente na atualidade, mas pela simplificação com requinte que conseguiram fazer da diversidade de artes que construíram o imaginário do circo.
A televisão absorveu parte dos números circenses e transmite cotidianamente programas que desafiam os limites humanos, com a exibição de pessoas que comem vidro, quebram tijolos com a testa, andam sobre lâminas afiadas e atualizam o papel do bobo da corte. Além disso, revelam seculares segredos dos mágicos e exibem picadeiros gratuitos. A palavra circo vem do latim e está associada ao desenho circular das arenas e dos estádios. O circo vem das feiras, dos jogos gregos, das andanças dos ciganos e atualmente está espalhado nas exibições dos malabaristas pelos cruzamentos das avenidas nos centros urbanos.
O circo de lona, com animais enjaulados, cuspidores de fogo, cavalos dançarinos em picadeiros circulares, mímicos, palhaços, anões, teatro de bonecos, ventríloquos, pantomimas e tambores que rufam anunciando os perigos do globo da morte, dos trapezistas, da hora em que o domador coloca a cabeça na boca do leão, da corda bamba, enfim, aquele que viaja pelas cidades, adaptando suas apresentações ao poder aquisitivo e ao agrado das pessoas de cada lugar, tem sobrevivido na seleção natural, entre o aproveitamento de parte do “novo circo”, parte do circo eletrônico e parte do circo de rua.
A temática ecológica trabalhada pelo Circo Nacional da China, demonstra o nível de preocupação socioambiental que chega ao mundo circense. Sendo a China um dos países responsável pelos mais altos índices de poluição do planeta Terra, o espetáculo “Natureza” se pronuncia como um grande perturbador de sensibilidades, embora, no momento da apresentação, consiga passar ao largo da complexidade política e moral que a questão encerra. O espetáculo se utiliza muito da força que a arte do circo possibilita e causou reações espontâneas de olhares atentos, silêncio de admiração e palmas acaloradas.
Os artistas chineses trouxeram à tona conversas sobre a beleza, sobre o sublime, sobre a capacidade humana de se superar e de surpreender pela combinação do natural com o cultural, a partir da arte. Ao produzir exuberância, o circo cumpre também o papel de despertador de condutas individuais e coletivas, diante da grave situação ambiental e da decadência estética a que fomos submetidos pela ideologia do consumismo. A apresentação se dá na fronteira da arte, mas a arte não é apenas ela mesma, é o que, a partir dela, nos faz sentir, pensar e agir.
O espetáculo do Circo Nacional da China mostra a plenitude da natureza em seu estado mais poético, mais lúdico e mais integrado ao humano. Dá para sentir a força do belo no cenário que vaza o palco para alcançar nosso colo mais íntimo de proteção e acolhimento, como um bom conto de descobertas e conexões ecológicas. Essa apresentação, além de uma obra apreciável é um alento para a vontade que temos em nós de legar às gerações futuras um mundo de verdes pulsações.