A questão urbana é um dos mais graves e urgentes temas sociopolíticos e culturais do Brasil. A expansão desequilibrada desse ambiente construído em nome das oportunidades e das realizações concentra os mais paradoxais problemas do mundo contemporâneo: crise de moradia, de desemprego, de violência, de saúde e de locomoção estão entre os efeitos do egoísmo social e suas desigualdades.
As particularidades da dinâmica urbana brasileira nesse imbróglio universal estão refletidas no livro A Cidade no Brasil (Editora 34, São Paulo, 2012), do ensaísta baiano Antonio Risério. Em seu texto leve e atraente, o autor aborda esse complexo fenômeno, com realce especial para as três capitais do país: Salvador (de 1549 a 1763), Rio de Janeiro (de 1763 a 1960) e Brasília (desde 1960).
O percurso comparativo regional e temporal, feito por Risério, estende-se por um panorama histórico mundial, possibilitando ao leitor visitar o entendimento de povos que sequer associam a ideia de cidade a espaços construídos, mas ao sentido comunitário de permanência. O caráter antrópico dessa obra ajuda a enxergar os transtornos urbanos atuais a partir de uma apurada interpretação de motivos fundantes.
A característica de sociedade de matriz urbana instalada no Brasil pelos portugueses tem, por exemplo, origem nos movimentos de ampliação do Império Romano, com latim, valores e genes levados por soldados. “Roma dominou Portugal do século II a.C. a inícios do século V d.C. e, nesse período, praticamente o definiu” (p.27). Antonio Risério lembra que até os germanos se renderam à força cultural latina, e que Portugal, assim como a Espanha, herdou a missão de construir um império.
A expansão islâmica, argumenta, produziu migrações dos núcleos urbanos para o campo na Europa feudal, entre os séculos VII e VIII. Todavia, assim como Roma, os muçulmanos tinham uma essencialidade urbana, e a volta à cidade ocorreu no século XII. “Depois de romanizada, Lisboa foi arabizada” (p.33). Foi assim que, além da dimensão urbanística, as técnicas e materiais de construção mouriscas chegaram ao Brasil. A arte do azulejo é um exemplo dessa influência.
Do ponto de vista estético, da arquitetura e do urbanismo, a cidade brasileira foi enriquecida por mundos de etnias e signos. Só que, enquanto Portugal esperou meio século para fundar Salvador, conta Risério, Diogo Álvares, o Caramuru, iniciava as primeiras póvoas mestiças, promovendo farras na praia baiana. Situação semelhante foi animada por João Ramalho em São Paulo e ao longo do litoral por outros colonizadores autônomos.
No processo colonial de urbanização, a impressão de vazio a ser construído, causada pela configuração mental de urbano ameríndia, com suas aldeias que mudavam de lugar, mas não mudavam de nome, deixou o terreno livre para a instalação de feitorias, destinadas à exploração do pau-brasil, e para a formação de espaços citadinos não premeditados. “A aldeia era socialmente estável, mas geograficamente móvel” (p.22), o que facilitou configurações urbanas mais relaxadas, como os próprios núcleos urbanos existentes em Portugal.
A cidade brasileira colonial não sofreu com padrões segregacionistas espaciais, na reflexão de Risério. O multi-sincretismo da língua, da religião, dos costumes e da arquitetura levou a um ambiente ambíguo, mas sem apartação sociorracial no organismo urbano. O autor fala que as vidas embaralhadas dispensavam muros e portões. “Uma realidade algo difícil de apreender hoje em dia, quando a segregação socioespacial é verificável nas maiores cidades do país” (p.97).
Antonio Risério chama a atenção para uma intrigante inversão ocorrida com o passar do tempo na cidade brasileira. “A segregação dos pobres já não gera enclaves no tecido urbano (…) Enclaves, hoje, são os bairros ricos. ‘Clusters’ de abundância e desperdício, ilhados num mar de pobreza e privação” (p. 216). Essa segregação espacial em base econômica ameaça a sustentação das metrópoles como lugar de comércio, indústria e centro político-administrativo.
No Brasil, os núcleos urbanos não foram interligados. Algumas cidades tinham vínculos diretamente com Lisboa e a maioria vegetava em torno de si mesma. Ainda hoje a trama interna dos centros urbanos não é bem desenvolvida. A rede de aproximação urbana segue precária. Lendo essas observações de Risério, é possível notar o quanto o país mantém-se inacessível e com poucas rotas na sua imensidão territorial.
O ensaio apaixonado e contundente de Antonio Risério acende muitas luzes críticas e empolgantes para quem quer saber um pouco mais sobre a cultura urbana brasileira. Ao clarear o campo da mitologia cultural da mestiçagem, ele destaca a nossa força integradora e a inclinação para o futuro. “O país parece sempre mais profundamente voltado para uma realização futura do que para o cultivo nostálgico” (p.263), coisa de um povo que ainda não desempenhou na história “o grande papel ou a grande missão que prometeu a si mesmo” (p.264).
Essa mensagem de alcance planetário emitida pelo pensador baiano é uma das instigantes atrações de leitura dessa preciosa obra, de muita qualidade reflexiva e literária. Boa de ler, cheia de informações curiosas e relevantes, A Cidade no Brasil traz em suas palavras sinceras e cativantes um modo brasileiro de interpretação, escrito por um respeitável intelectual público. Raridade.