Arqueologia de um grande amor
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 17 de Abril de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Está havendo um enorme mal-entendido com relação ao amor. Confunde-se crise de compreensão com o significado de amar. O individualismo e a incomunicabilidade ameaçam dar cabo as relações afetivas e a decretar o fim das paixões. Em meio a essa turbulência uma carta que virou livro sacode a noção de amor e avisa que o assunto merece mais atenção do que tem recebido nos tempos atuais. Estou falando da “Carta a D. – História de um amor” (Annablume e Cosac Naife, 80 p. 2008), do filósofo e jornalista austríaco André Gorz (1923 – 2007), conhecido por suas obras de teoria social e política contemporânea.
Trata-se de uma relíquia literária, na qual o autor, além de reconstituir o passado com sua mulher Dorine, apresenta testemunhos dos fluxos e refluxos da vida amorosa que dele subsistiu, encaixando com naturalidade e grandeza aspectos essenciais da sua produção intelectual. Como adepto do marxismo existencialista, André valorizou a autonomia do indivíduo para fazer dessa obra uma espécie de Juízo Final. A reflexão de André busca evidenciar os vestígios daquele amor. Em sua etiologia, o autor encontra a origem de todo o fascínio que teve por uma mulher que tinha algo de si em tudo o que fazia, inclusive na habilidade de amá-lo.
A beleza dessa peça literária está na pureza e na lucidez com que André Gorz resume sua vida e sua obra em torno de Dorine, embora ele não tivesse até então sabido reconhecer o seu papel. A carta expõe até a objeção ideológica que ele tinha pelo casamento, por considerá-lo uma instituição burguesa. Ressalta suas reticências sobre a vida a dois e como isso alimentou inicialmente as dúvidas de Dorine. “Eu considerava que ele [o casamento] codificava juridicamente e socializava uma relação que, sendo de amor, ligava duas pessoas no que elas tinham de menos social”.
O documento trata do amor e do fascínio recíproco de duas pessoas “por aquilo que elas têm de menos dizível”. O amor vivido por André e pela atriz inglesa Dorine superou uma dimensão crítica na relação dos intelectuais e escritores com suas amadas. A escritora Simone de Beauvoir (1908 – 1986), que amou e foi amada pelo filósofo e escritor Jean-Paul Sartre (1905 – 1980), achava uma incoerência alguém gostar de um poeta, por sua visão metafórica do mundo e, ao ir morar com ele, querer exigir que o coitado assuma papéis regulares da vida a dois. Neste ponto, André ficava ainda mais apaixonado por Dorine, pois ela tinha a compreensão de que quem ama um escritor deve amar que ele escreva.
O livro “Carta a D.” foi o último trabalho de André Gorz. Escrito para que ele mesmo conseguisse entender o sentido de sua vida, dentro e fora das normas sociais circundantes. “Eu falava de você num tom de desculpa, como se falasse de uma fraqueza”. Revela que isso fazia com que ele não se amasse por amar Dorine. Mesmo em relações bem estabelecidas, o problema da “palavra que você não disse quando devia ter falado e da palavra que você disse quando devia ter-se calado” é o maior problema entre as pessoas que se amam, na opinião da escritora Lya Luft, que está lançando o livro “O silêncio dos Amantes” (Record, 160p. 2008).
Essa questão aparece nas lembranças de André, quando ele fala do seu livro “Le Traître” (1958), no qual deveria ter aproveitado mais para compartilhar do seu amor, mas acabou enveredando pelo tema da centralidade do dinheiro e pela crítica ao modelo de consumo, que se estabelecia no início da segunda metade do século passado. Ao se referir a essa obra, prefaciada por Sartre, ele explica o motivo da sua omissão: “Estar completamente apaixonado pela primeira vez, ser amado de volta, era aparentemente banal demais, e privado demais (…) não era uma matéria apropriada para me fazer atingir o universal. Um amor naufragado, impossível, isso sim, ao contrário, rende a nobre literatura”. Essa situação de vergonha é considerada pelo psiquiatra Flávio Gikovate como uma imaturidade não resolvida nos seres humanos.
Gikovate também está lançando um livro sobre o assunto, “Uma História de Amor… com Final Feliz” (MG Editores, 168p. 2008) e sinaliza para o avanço do individualismo como conseqüência da dificuldade de lidar com o outro. Para ele, o “amor é o que sentimos por quem atenua nossa sensação de desamparo”. Na história de dedicação mútua de André de Dorine este aspecto é bem evidente quanto ele diz que eles não tinham um lugar assegurado no mundo e que somente teriam aquele que construíssem juntos. “Nós éramos, eu e você, filhos da precariedade e do conflito. Fomos feitos para nos proteger mutuamente”.
André, além de filho de uma família pobre, era judeu austríaco, em um contexto de perseguição nazista. Dorine, por sua vez, tinha vivido períodos de grande insegurança na infância, com o pai inválido e o padrasto brigando continuamente com a sua mãe. Sobre isso André escreveu: “Você pensava que, se o amor fosse aquilo, se um casal fosse aquilo, seria preferível viver sozinha e nunca se apaixonar”. Mas se apaixonou porque, segundo André, eles conseguiram ter um mundo em comum, do qual percebiam aspectos diferentes e consideravam essas diferenças a riqueza do casal.
De certo modo, o romantismo de André e Dorine antecipou a mudança da idéia de fusão de duas metades para a aproximação de dois inteiros, registrada por Flávio Gikovate como a forma de amor que caracterizará o século XXI. Antecipou também um estilo de vida inspirado na ecologia política, considerando que no entorno da casa onde moravam, eles haviam plantado duzentas árvores e virado as janelas para as copas das árvores. Essa relação de amor hibridizada com amizade, foi chamada de “amorzade” pelo compositor e cantor Chico César em seu livro de poemas “Cantáteis” (Garamond, 108p. 2005), no qual o autor celebra a força dessas partes afetivas que muitas vezes se negam.
O teor de “Carta a D.” tem no reconhecimento em vida as interrogações que prenunciavam a despedida do casal. “Por que eu não disse o que me fascinou em você? (…) Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante em minha vida? (…) Por que, então, deixar de fora essa maravilhosa história de amor?”. André agradece a Dorine pela influência que ela exercera, inclusive na ampliação da sua visão política: “Você tinha mais senso político do que eu. Você percebia realidades que me escapavam porque não correspondiam à matriz que eu usava para ler o real”.
Quando Dorine adoeceu, ele se aposentou para cuidar dela. Dividia o quarto na clínica. “Eu vigio a sua respiração”. Ficava impressionado com o entusiasmo que ela mantinha na luta para domesticar a morte. Lembra que o único momento em que a vira triste foi quando moraram em um bairro de Paris, com ruas desertas e lojas empoeiradas. “Até então havíamos vivido na pobreza, mas não na feiúra”. Ela sofria de dores muito fortes. André não suportava vê-la sozinha em seu mundo de aflição.
Eles estavam com mais de oitenta anos e há sessenta viviam a aventura de amar. Deduziram que a eles só faltava a clareza que estava imortalizada na Carta, redigida entre os dias 21 de março e 6 de junho de 2006. Em 22 de setembro de 2007, os dois foram encontrados mortos, lado a lado, num gesto de intensa cumplicidade amorosa, como um não prático à possibilidade de separação que os ameaçava com o agravamento da doença de Dorine. A morte voluntária tem um sentido de dignidade na guerra e na política de sociedades como a romana e a japonesa. No caso de André e Dorina, a injeção letal selou a dignidade no amor.