Espaço público em banda larga
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 01 de Maio de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A instalação indiscriminada de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) tem contribuído para a banalização desse importante instrumento de investigação e de apuração de anormalidades na democracia. Mesmo assim, vez por outra essas comissões surpreendem com assuntos de interesses relevantes, como é o caso da CPI da Pedofilia, em desenvolvimento no Congresso Nacional.
O resultado mais emblemático dessa ação é a autorização para a quebra do sigilo dos provedores de acesso à Internet, decisão que levará à abertura de inquérito contra os suspeitos de estímulo e prática da pornografia infantil. Isso mesmo, na semana passada a Google, dona do Orkut, entregou ao Senado informações contidas em mais de três mil álbuns de imagens que têm sido alvo de investigações do Ministério Público e da Polícia Federal.
A empresa norte-americana foi obrigada a repassar os dados, inclusive os registros dos computadores (IPs), embora tenha resistido o quanto pôde, alegando que sua origem é estadunidense e que não deveria se subordinar às leis brasileiras. É incrível a mentalidade onipotente dessa gente. Quando é para vender, o mundo é plano, globalizado etc, mas quando é para compartilhar responsabilidades, que cada qual cuide sozinho do seu problema. E olhe que dos sessenta milhões de usuários do Orkut em todo o mundo, vinte e sete milhões são do Brasil. Quase a metade.
Estamos entrando na segunda década de uso popular da Internet e está mesmo mais do que na hora de começarmos a tomar os cuidados necessários para não estragarmos essa maravilhosa conquista de integração que é a mídia digital. Pode parecer antipático, para algo que se anunciou como sem limites, mas delito é delito, não interessa onde ou por qual meio seja cometido. A apologia pública ao que é ilegal é ilegal, na praça física ou na praça virtual. Se os crimes podem ser rastreados, que sejam rastreados.
Não se trata de perseguir páginas, de censurar conteúdos, de ameaça à liberdade de expressão. A questão é uma só: quer nas ruas ou nas infovias, as pessoas precisam assumir a responsabilidade pelos seus atos. As interações sociais mediadas pelas quatro telas irmãs (cinema, televisão, computador e celular) se tornam cada vez mais intensas e complexas, à proporção que se sofisticam os recursos de produção e distribuição de conteúdos e, se isso é fabuloso por um lado, é também preocupante por outro.
O assunto precisa ser tratado sem dogmas. As movimentações (advocacy) em favor da criação de políticas públicas para a “inclusão digital” são oportunas, embora tendam a imprimir ao debate um certo quê de fundamentalismo tecnológico, uma convicção de culto religioso, direcionado à venda de computadores como solução para a educação. Enquanto isso a Microsoft anuncia que o futuro da Internet será orientado para serviços, com superfícies de cristal líquido, espalhadas pelos lugares mais diversos, e não limitada às máquinas dos usuários.
Esse jogo salvador proclamado pelo mercado digital me faz lembrar o romance “A Pérola” (BestBolso, 112 p. 2007), de John Steinberck (1902 – 1968). Nesta bela obra o autor enfoca o drama que passa a viver um nativo da América do Norte, de nome Kino, que tem a “sorte” de encontrar uma pérola excepcionalmente valiosa, mas não dispõe de conhecimentos sobre as implicações do seu achado no funcionamento do sistema que o cerca e acaba, na mais legítima das intenções, provocando uma tragédia na sua vida e na vida da sua família.
Na pérola redentora, como em uma bola de cristal, Kino vê o filho podendo estudar: “Meu filho vai ler livros. Vai saber escrever. Meu filho vai saber também contar e essas coisas que nos tornarão livres”. Esse é o seu pensamento de pai e a expectativa recorrente e pura de alguém que tem consciência do valor de um achado, mas desconhece o que pode fazer com ele. Na sua luta com a ignorância, ele sonha com o filho lendo, indo à escola, quebrando a redoma da falta de acesso aos códigos do mundo dominante, que o mantém cercado aos confins da sua condição de colonizado.
Percebo a urgência de propostas e programas, tais como os de compra de um computador para cada estudante, da rede pública ou privada de ensino, como a pérola de Steinbeck: uma grande oportunidade que, posta fora do tempo certo, do lugar certo e do propósito devido, poderá “afugentar a sorte”. A potencialização dos meios, sem um claro sentido dos fins, inclina-se basicamente, por um lado, ao escoamento de aparelhos que estão com os dias contados e, por outro, a atender aos chamamentos sedutores do mundo da delinqüência.
A solução, óbvio, não é perder a chance de aproximar as pessoas dos avanços tecnológicos. Entretanto, não parece razoável fazer isso sem o estabelecimento mínimo de parâmetros que dêem ao uso da Internet um significado pedagógico da própria era da sociedade em redes. Mais do que promover o individualismo, os programas de realidade digital são bem mais educativos quando ensejam o encontro real das pessoas e a vivência comunitária em forma de píer para a navegação na web e sua força de integração social.
O crescimento da mídia social é um fato, portanto, deve ser zelado como se zela tudo o que é feito para durar. As redes sociais de relacionamentos (Orkut, MySpace e Facebook), as páginas destinadas a veiculação de vídeos e fotos (YouTube, Fotolog e Flickr), os fóruns, as listas de discussões, salas de bate-papo e o desenvolvimento de sistemas de produção colaborativa apresentam duas faces em uma mesma moeda: a do usuário, transformado em consumidor compulsório; e a do mercado digital, que traça os perfis desses usuários, a partir das suas atividades on-line, e negocia esses perfis.
O Brasil tem cerca de quarenta milhões de internautas. Com o aumento do poder aquisitivo na base da pirâmide social, o terreno está cada vez mais fértil para a indústria, o comércio e o serviço digital. A Internet está se tornando mais portátil e os aparelhos mais baratos. É bom que as pessoas possam adquirir o que necessitam ou desejam. Mas o destino de uma nação não deve se limitar ao de ser apenas consumidora e fornecedora de mão-de-obra barata. A sociedade precisa determinar-se a pensar grande, para ser pelo menos do tamanho da sua cultura.
Explorar bem o espaço público em banda larga é construir ágoras virtuais, onde a livre circulação de idéias, a criatividade e o direito à fala são sagrados. Em tese, a diferença entre a praça tradicional e a praça virtual é que esta é mediada pela tecnologia. Nem por isso deve servir de instrumento para proteger anomalias e maus comportamentos desviantes. A pregação do anonimato é um misto de covardia com democratização do cinismo. O que a CPI da Pedofilia está fazendo, ao exigir os endereços dos responsáveis pela disseminação de fantasias sexuais com crianças pela Internet, é a aplicação mínima do código social existente nos logradouros públicos.
Pedofilia, incitação à violência, orientação a práticas suicidas, mercado de drogas, montagem de quadrilhas, exaltação a brigas de torcidas organizadas, disseminação de ódios, estímulo ao preconceito, à discriminação e à intolerância são alguns dos distúrbios sociais que não podem correr frouxo na Internet. Barreiras éticas não são barreiras antidemocráticas. Pelo contrário, são fios de sustentação da liberdade, linhas de arraia que nos permitem flanar pelos espaços públicos ao sabor do vento, mas com um ponto de apoio em terra firme. A humanidade sempre negociou renúncias para promover a sociabilidade e sobreviver à seleção natural. Respeitar essa estratégia pode ser razoável se não quisermos nos destruir.