Histórias para filhos e filhas
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 15 de Maio de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O crescimento dos casos públicos de violência contra a criança exige que ofereçamos aos nossos filhos e filhas histórias que lhes dêem a oportunidade de enfrentar o medo em um plano menos arriscado e mais esperançoso do que o da realidade nua e crua. As notícias continuadas e insistentes de degradação das relações humanas estão próximas demais da infância e isso exige que recorramos urgentemente a espaços de vivências transformadoras, como o da literatura, sob pena de sufocarmos o que ainda nos resta de referências de afeto e do poder da imaginação.

As histórias infantis vêm de antes da descoberta da infância, antes mesmo do livro e da literatura, e continuam brotando na natureza lúdica humana e na relação das pessoas com o mundo intangível. No Ocidente, as brincadeiras pelo simples prazer de brincar, como a de “esconde-esconde”, estão registradas nos vestígios gregos de mais de dois mil anos, embora a figura infantil só tenha começado a ter destaque tempos depois, na representação da estatuária barroca, no século XVII, com anjinhos de asas e seus cabelos encaracolados.

Foi somente no século XVIII que começou a haver a compreensão de que crianças e adultos necessitam de tratamento diferentes, trajes diferentes, atenções diferentes. A infância ganhou categoria etária e as narrativas da oralidade do período medieval, que se estendeu, aproximadamente, do século V ao XV, serviram-lhes de ensinamentos. As descobertas do mundo pelos contos fantásticos também se somaram a esse repertório de fábulas.

Na cultura clássica, greco-romana, vigente até o século V, houve certo despertar para a valorização da leitura e da educação, embora fosse comum, naquela época, a prática do infanticídio. Bastava que um pai não aceitasse o nascimento de um filho, para que a criança fosse eliminada. Com a chegada da Idade Média, pouca coisa mudou no que se refere à indiferença para com as crianças. Quando muito algumas delas eram selecionadas pelos monges para serem adestradas nos mosteiros, em sistema de confinamento integral.

A regra básica era a de não haver distinção nas formas de comportamento entre adultos e crianças. O exercício lúdico e o devaneio se davam na oralidade, por meio das piadas e mímicas dos bobos da corte, da contação de histórias e de sermões públicos, espetáculos teatrais sacros, cantos religiosos e recitais narrativos de trovadores e menestréis.

Meninos e meninas não passavam de homens e mulheres pequenos, com a infeliz diferença de não estarem aptos para o sexo nem para a guerra. Mesmo com reservas, o conhecimento organizado nos livros contribuiu de forma relevante para o entendimento de que se colocassem aqueles seres, menores de idade e ainda não aptos aos afazeres dos adultos, para aprender a ler, eles poderiam servir bem melhor às suas comunidades religiosas, culturais, sociais, territoriais e políticas.

As histórias infantis, que já existiam na fantasia adulta, foram capturadas da oralidade por escritores de diversos países europeus, que colheram e releram os contos de fada e as fábulas gregas. A vida medieval na Europa era tão embrutecida que só restava às pessoas acreditar na imaginação. A opção que tiveram foi a de contar suas próprias histórias, fantasiar o cotidiano e passar saberes de geração a geração, séculos por séculos, até um dia chegar à Renascença (século XV e XVI), quando houve a retomada do interesse pelo saber e pela arte, em parâmetros menos teológicos e mais humanos.

Fizeram isso com tamanha profundidade de sentimentos que, mesmo carregadas de lições de moral de uma época em histórias de príncipes, princesas, bruxas, fadas, madrastas, amas, caçadores, lenhadores, gigantes e anões, produziram o etéreo e o atemporal. Os contos de fada são uma espécie de museu do conhecimento da alma humana, que oferece curiosidades sobre a aprendizagem da vida, tendo a fantasia como parte intrínseca do real. Neles, até a representação do feio é atraente, nas figuras das bruxas e dos vilões. O sucesso dessas narrativas deve-se ao fato de as crianças terem elementos para exercitar mentalmente o que não entendem, o que as angustia, o que as apavora.

A fixação das fábulas em textos de “Era uma vez…”, ajudou nossos ancestrais a perceberem a existência diferenciada da infância, ou melhor, de como a infância elabora no campo da imaginação sentimentos relativos à violência sem o risco de se machucar. Essa é uma experiência que devemos repetir com mais força expiratória, a fim de alcançarmos novamente a realidade pelo domínio do mito, do pensamento mágico, da lenda, da fábula, do maravilhoso, do encanto.

Os romances de cavalaria, cheios de magos, atos de bravura, amor ardente e amor cortês, também de fonte medieval, têm grande presença no despertar dos adultos e no adormecer das crianças. O fato é que os primeiros textos para crianças foram adaptações de narrativas orais colhidas do mundo adulto e, talvez por isso, a literatura infantil tenha ganhado, pelo olhar estreito da intelectualidade sem imaginação, a pecha de gênero secundário, nivelado ao valor que eles atribuem ao brinquedo.

São inúmeros os exemplos de obras atemporais e universais da literatura infantil e juvenil. Mas onde elas nasceram? Nasceram na inversão das leis naturais e da lógica formal do cotidiano, nas passagens inexplicáveis, na aventura, no suspense, enfim, na liberdade de interpretação da vida, que a palavra, o texto literário, oferecem como uma brincadeira ao prazer de inventar, de remodelar o real, dentro do universo de crenças e representação de cada um. A oportunidade de ler é a oportunidade de preparação para o uso criativo da linguagem e para o exercício da escolha pessoal e coletiva diante dos condicionamentos impostos pelos interesses preponderantes na vida social.

A influência da psicologia experimental, que, no século passado, revelou a inteligência como o espaço organizador da compreensão do mundo em cada pessoa, fez crescer a percepção da importância da literatura infantil como meio fundamental para a evolução e formação da personalidade do futuro adulto. Observações como essa me põem a acreditar no momento atual, desde que tenhamos a sabedoria de lançar mão dessa riqueza inesgotável da humanidade, que é a narrativa literária, como fenômeno de reinvenção do cotidiano. Afinal, as histórias infantis não existem, como já frisei, por derivação da compreensão de que existem crianças, elas vêm, não esqueçamos, de antes da infância porque o ser humano é lúdico em sua natureza.