Uma senha para o hábito de ler
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 12 de Junho de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Em 1943, por ocasião dos 25 anos de publicação do livro Urupês, de Monteiro Lobato (1882- 1948), o escritor Oswald de Andrade (1890 – 1954) escreve uma carta preciosa a seu velho desafeto. Referindo-se ao ano de 1918, quando os paulistanos paravam para ver e ouvir “o ruído dos primeiros aviões, voando muito alto, no azul, com medo de esbarrar nas casas de dois andares”, Oswald reconhece que o livro de Lobato é de fato o verdadeiro Marco Zero das “transformações tumultuosas, mas definitivas, que vieram se desdobrando desde a Semana de Arte de 22” (…), “anterior ao Pau-Brasil e à obra de Gilberto Freyre”.
A carta de Oswald antecipa com sensível lucidez as razões da longevidade da obra lobatiana: “Você foi o Gandhi do modernismo. Jejuou e produziu, quem sabe, nesses e noutros setores a mais eficaz resistência passiva”. Ao compartilhar com o autor do Sítio do Picapau Amarelo o quanto é difícil fazer literatura, tendo apenas “a rua dura para trilhar, a mesa sem dossiês para escrever e a missão dolorosa e sobranceira de dizer o que pensamos”, Oswald sentenciou “Você sentiu-se cansado e refugiou-se numa calçada, rodeado de crianças. E começou a contar histórias”.
Pois bem, 65 anos depois dessa carta de Oswald, a obra de Monteiro Lobato aparece no topo da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que diagnostica e mede o comportamento do leitor brasileiro a partir de cinco anos de idade. Lançada em Brasília, no último dia 28 de maio de 2008, pelo Instituto Pró-Livro, essa pesquisa revela que, depois da Bíblia, a obra mais importante na vida dos leitores brasileiros é a que está reunida no Sito da Dona Benta.
O esforço de Lobato para criar uma cultura do livro, associada à qualidade, originalidade e a honestidade na sua relação com a infância, sobreviveu a muitas adversidades porque faz parte do imaginário de brasilidade. Não é à-toa que, em resposta espontânea e com única opção, ele aparece em primeiro lugar como o escritor brasileiro mais admirado pelos leitores do Brasil.
As repostas dos 5.012 leitores, com mais de cinco anos de idade, residentes em 311 municípios brasileiros, evidenciam que a leitura no Brasil está dividida em leitores de literatura brasileira, de best-sellers e clássicos e de publicações espiritualistas nacionais e estrangeiras. Dos 30 livros considerados mais importantes, 12 estão no primeiro grupo, 12, no segundo e 6 no terceiro. Somando tudo, a pesquisa mostra que o brasileiro lê cerca de 4,7 livros ao ano. Convém ressaltar que nos casos dos livros de caráter essencialmente culturais e históricos e dos clássicos incluem-se os didáticos e as indicações para vestibulares. Aos demais, se adiciona uma enxurrada de livros evangélicos, pentecostais e espíritas.
O hábito de se descobrir nas histórias e mundos dos livros é uma manifestação de agrado pessoal que resulta de uma série de circunstâncias educacionais, culturais, políticas e religiosas. Os livros, os jornais e os blogs são suportes de falas com as quais nos identificamos, com as quais nos achamos, nos perdemos, enfim, com as quais procuramos dar sentido ao que somos. Em Retratos da Leitura no Brasil as preferências dos leitores apontam 52% para revistas, 50% para livros, 48% para jornais e 20% para textos na Internet.
No evento de lançamento da pesquisa, o secretário-executivo do Ministério da Cultura, Juca Ferreira, destacou que esse trabalho reflete o impacto do bom momento do crescimento da economia, associado à redução da desigualdade social, e seus efeitos na subjetividade dos brasileiros, citando como exemplo, o aumento da disposição dos entrevistados de ampliar o conhecimento e a informação pela leitura. “O Brasil está no caminho certo no que se refere à sua transformação em sociedade leitora. E que caminho é esse? É o da construção de um grande pacto nacional pelo livro e pela leitura, envolvendo muitos ministérios, governos estaduais e municipais e principalmente de mobilização da sociedade“.
A professora Antonieta Cunha, que é presidente da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, em suas considerações sobre a pesquisa, chama a atenção para a necessidade de maior articulação na cadeia da leitura, que vai dos autores aos leitores, passando por ilustradores, editoras, divulgadores, livrarias, mediadores de leitura, pesquisadores, gestores e encarregados da definição das políticas de leitura para o País. “Há uma enorme fatia da população que não conhece os materiais de leitura, ou conhece muito mal (…) mesmo tendo-os por perto, falta a descoberta, a volta da chave que faz a súbita ligação e torna o sujeito capturado para a leitura”. Antonieta fala da senha que leva a descoberta.
A leitura é um ato de sociabilidade. Precisamos aprender a ler o quanto antes tudo o que informa, encanta e inspira. É por meio da literatura que muitas vezes nos damos conta das sutilezas das nossas características mais humanas. Para isso, tão fundamental quanto o trabalho conjunto dos órgãos públicos de educação e cultura é a ação pedagógica das escolas que estimulam as práticas familiares de leitura.
O Colégio Santa Isabel, de Fortaleza, está desenvolvendo um projeto com base no meu livro/cd Flor de Maravilha (Cortez Editora), que alcança a dimensão plena do educar para a leitura. Idealizado pela educadora Raquel David, esse trabalho envolve uma sensibilização que começa com a música, passa pelos brinquedos referidos nas histórias e, só então, a criança experimenta vivenciar a literatura. Para isso, a escola criou o que eles chamam de “Baú do Flor de Maravilha”, que a criança leva para casa e compartilha com familiares e amigos a alegria das descobertas que ele possibilita.
O baú de literatura, brinquedo e música motiva à criança a falar do que está fazendo na escola e motiva também os seus cuidadores a reagirem com o lúdico que cada adulto guarda dentro de si. A farra é tão boa que atrai ainda primos, vizinhos e amigos. Os pais, as tias e os avós participam e muitos fazem os mais variados registros para contar às educadoras do impacto que o baú tem gerado na relação das crianças com eles e com a leitura. O resultado não poderia ser diferente: crianças empolgadas com a leitura e encantadas com a experiência de poderem pegar nas histórias, brincar com elas e se sentir parte dos seus conteúdos.
Ao ler alguns dos relatos criativos e afetuosos, construídos pelas crianças do Santa Isabel, no aconchego da participação direta dos seus familiares, fiquei emocionado. Essas coisas reforçam o meu otimismo com relação ao futuro da educação e da cultura. Lembram-me dos ensinamentos do querido pensador e educador Rubem Alves, que só considera completa a missão da educação quando ela consegue despertar o prazer de ler.
O coordenador da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, Galeno Amorim, destaca esse papel extraordinariamente poderoso da escola no desenvolvimento de leitura. Mas realça também a importância que, a partir dos dados de comportamento dos leitores, seus gostos e preferências de leitura, faz-se necessário “escolher caminhos, articular alianças e engendrar, com muita propriedade, as estratégias para a formação de leitores no Brasil e a ampliação da leitura”. Essa é uma missão coletiva de pais, mães, educadores e gestores do setor público e privado.