Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 03 de Julho de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
As mudanças técnicas e culturais que modelam o comportamento do consumo de música começam a estabelecer um novo modelo de negócio que transforma gravadoras em empresas musicais e a música comercial em canção-jingle. Em ambos os casos o uso da internet e o discurso da gratuidade apresentam pontos de semelhança estratégica.
A nova forma de distribuição de música, por meio de “download” para tocador de MP3, segue na contramão do monopólio fonográfico porque o cd em si já não é mais a vaca leiteira desse mercado. O cd passa a ser utilizado como material promocional para estimular a venda de shows, turnês, camisetas, trilha sonora de filmes, seriados, novela, eventos desportivos e festas em geral.
O que as empresas musicais estão fazendo é trabalhar marcas de artistas. Na semana passada, durante o Festival Internacional de Publicidade de Cannes, Rupert Murdoch, proprietário do mais poderoso grupo de comunicação do mundo, o News Corp (Wall Street Journal, DowJones, 20th Century Fox, Sky e Fox News), reforçou que o grande lance é investir em marca e em informação de qualidade. A guerra nos novos mercados é por conteúdos e visibilidade.
No Brasil, as empresas musicais estão acertando o passo na nova coreografia do mercado. “Dança-Êh-Sá – a Dança dos Herdeiros do Sacrifício”, de Tom Zé está disponível na rede mundial de computadores para ser copiado na íntegra (www.albumvirtual.trama.com.br). É uma experiência inspirada no modelo da televisão, onde a programação é gratuita e a publicidade paga a conta. A cantora Titane também está colocando na rede o seu novo disco “Ana” para ouvir, para baixar e até para mexer (www.titane.com.br), com apoio da lei mineira de cultura.
O ministro Gilberto Gil é outro que está de cd novo nas lojas. Antes, porém, as faixas de “Banda Larga Cordel” (Warner), foram disponibilizadas para ser ouvidas na internet, no formato “streaming”, que permite a transmissão direta de áudio (www.bandalargacordel.com.br). Tem vídeo com entrevistas do artista e imagens da turnê. Gil deixa ouvir, mas não quer que copiem. Ficou famosa a sua batalha anos atrás para ser dono das próprias músicas, em árdua luta judicial contra editoras e gravadoras.
Esse tem sido o caminho trilhado pelos artistas, digamos assim, lado A da MPB, aqueles que mesmo chegando ao mercado, não são do mercado. No lado B, a tendência tem sido a da canção-jingle. Em monografia apresentada no último dia 27 a uma banca examinadora formada pelos professores Nonato Lima (UFC), Kalu Chaves (Unifor) e pela orientadora do trabalho, Andréa Pinheiro, a estudante do Curso de Publicidade da Universidade de Fortaleza, Nathália Cardoso, apresentou um estudo original e oportuno sobre o fenômeno que vem transformando o jingle tradicional de 30 ou 60 segundos em canção-jingle de três minutos, que é o tempo regular das músicas comerciais.
A priori, não há nada demais na utilização de músicas e de paródias musicais em publicidade. Os “spots” com música e os “jingles” sempre foram vistos como recursos normais de recorrência à emoção na busca publicitária por fácil memorização. Agora mesmo, no período junino, temos um belo comercial dos chocolates Sonho de Valsa, com a música “Olha pro céu” (Luiz Gonzaga / José Fernandes), rodando na televisão. Mas não há camuflagem, todo mundo sabe que se trata de um comercial.
A presença espontânea de marcas em composições faz parte da vida do autor. Foi o que aconteceu em “Alegria Alegria” (Caetano Veloso): “Eu tomo uma coca-cola / ela pensa em casamento”; e o que parece ocorrer com “All Star Azul” (Nando Reis): “Estranho é gostar tanto do seu all star azul (…) Seu all star azul combina com o meu preto de cano alto”.
Nahtália Cardoso dá uma olhada no retrovisor da relação música e publicidade e vê Tom Jobim e Vinícius de Moraes, em 1965, se recusando a alugar “Garota de Ipanema” para um comercial de refrigerante. Eu também procuro lembrar de algo assim e recordo do João Gilberto, o cantor-mito da bossa-nova, como garoto-propaganda da Brahma. Com seu banquinho e violão, gravou em 1991 um comercial em filme de Walter Salles Jr., que dizia: “Pediu cerveja / pediu Brahma Chopp / Brahma Chopp / número um”.
Nos anos 1980, ocorreu um caso inusitado de canção-jingle no Ceará, gravado por “livre e espontânea pressão”. O Quinteto Agreste procurou o apoio do Banco do Nordeste para concluir a gravação do seu primeiro disco, “Luz do Sol”. Os então executivos do banco propuseram que eles gravassem uma faixa publicitária do BNB que o recurso seria liberado. Os integrantes do grupo se sentiram inicialmente ultrajados com a proposta. Depois de muito aperto e necessidade, aceitaram cantar a canção-jingle em algumas cópias que foram distribuídas como brinde, mas fizeram o elepê como queriam originalmente.
Recordo também do polêmico caso de Zeca Pagodinho, em 2004. Bebedor confesso de cerveja Brahma, ele foi contratado pela Schincariol para fazer um comercial. Fez, mas logo em seguida rompeu o contrato sob os auspícios da Ambev, dona da marca Brahma. A cervejaria de Itu reagiu, contratando um ator, sósia de Pagodinho, para um comercial em que negociava sua mudança de opinião: “Por US$ 3 milhões falo que amo e ainda dou beijo na boca”, dizia o dublê em um bar no qual aparecia a tabuleta: Prato do dia: Traíra”.
Há canções-jingles de produtos de consumo e de campanhas políticas que ficam gravados na memória. Posso citar dois que vez por outra chegam com encanto e serenidade à minha lembrança: o das antigas calças US Top, que dizia assim: “Liberdade é uma calça velha / azul e desbotada / que você pode usar / do jeito que quiser”; o outro é o de campanha que embalou Lula a chegar à Presidência da República: “Lula-lá / Brilha uma estrela / Lula lá / Cresce a esperança…”.
Volto ao estudo da Nathália para procurar entender um pouco mais o que está se passando hoje. Ao ler sua afirmação de que “do mesmo modo que músicas foram transformadas em jingles, estes foram transformados em música”, aparentemente simples assim, fico me perguntando se chegamos ao momento trágico de a música do “homo-consumere” ser o jingle. Já que está quase tudo nivelado por baixo, a insensatez recomenda que é melhor fazer logo jingle como hit musical.
Ela cita alguns exemplos que reproduzo como ilustração do que estamos falando: “Eterna Busca”, da cachaça Sagatiba, massificado como um sucesso do cantor Seu Jorge: “Saga quer dizer em busca / Tiba que dizer eterno”; “Viajante Mastercard”, sem identificação do intérprete: “Viajei num balão / Tive que me virar / Tava no meio do nada / Mas tinha Mastercard”; “Diferentemente Lindo”, jingle-canção dos produtos de higiene pessoal, da Albany, lançado como sucesso de Daniela Mercury, Ed Motta, Simone, Marina e Chiclete com Banana. “Não me compare / Sou incomum”.
O caso mais camuflado é o de “Completo”, do Bradesco. O conceito da campanha do banco é “completo”, o jingle-canção fala de “É tão bom ter alguém por perto / Pra você se sentir completo”. E a assinatura é um link para a página eletrônica do banco, onde o consumidor pode baixar a música “gratuitamente”. Esse jingle-canção está no DVD “Maracanã Multishow ao Vivo”, de Ivete Sangalo.
Entender essa questão é uma forma de saber que a MPB não é isso, que o mercado da música não é a música. A música está presente em nossas vidas desde as canções de ninar aos réquiens. O que há é uma degeneração da linguagem da vontade e do sentimento honesto, próprios da música, por parte de uma insistente vileza comercial.