Ressocializar a publicidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 31 de Julho de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Com o crescimento das movimentações de consumo consciente, por meio das quais a sociedade procura se descolar da condição de consumidora passiva para levar em conta as conseqüências do que consome, não é só o conteúdo e a forma das peças publicitárias que passaram a ser alvo de debate. A publicidade em si, sobretudo a que extrapola os limites do bom senso, também virou objeto de atenção social, em um oportuno clima de discordância esclarecida.

De um lado, surgem reações no meio publicitário que atribuem a essas movimentações críticas o caráter de tutela das pessoas comuns, por parte de uma minoria que se consideraria mais esclarecida. De outro lado, fazendo o raciocínio inverso, constrói-se no âmbito da sociedade civil o entendimento de que não dá mais para contemporizar diante da postura de intocabilidade pretendida por muitos publicitários que se julgam conhecedores dos desejos das pessoas e se sentem no direito de cometer abusos contra elas.

A área de manobra para essa gente fica cada vez mais apertada com o aumento da percepção do avanço da exceção sobre a regra. Mesmo assim, diante de casos como o da aprovação (9/7/2008) pela Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara Federal, do substitutivo do Projeto de Lei nº 5.921/2001, que propõe a proibição da publicidade dirigida a menores de até 12 anos e limita os comerciais destinados a adolescentes, persistem os argumentos de que o “sistema imunológico do organismo social” dispensa restrições.

Os defensores da ausência de freios para a publicidade alegam que esse tipo de prevenção é inconstitucional.  Esquecem que em seu Capítulo V a Constituição Federal determina “o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” (Art. 221, IV). Ao passo que, por ignorância ou esperteza, predominar no universo publicitário o juízo de que a publicidade está acima do bem e do mal, a sociedade precisa se proteger da sua sanha hiperbólica com leis e outros recursos de defesa.

Se a omissão diante de tudo o que se revela danoso servisse para fortalecer o “sistema imunológico do organismo social” não teriam sentido ações como a da Anvisa, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que cancelou na semana passada o registro do antiinflamatório Prexige, por sua relação risco-benefício não ser favorável ao paciente; nem a da Polícia Federal, que desbaratou uma operação de marketing viral de venda ilegal pela Internet, de remédios controlados, de caixa com tarja preta.

O estabelecimento de restrições nesses casos chega a ser maliciosamente insinuado como uma idiossincrasia brasileira. Muito pelo contrário, agora é que esse tipo de providência começa a ter presença continuada no País. Nos EUA, o também antiinflamatório Vioxx (rofecoxib) foi posto fora de circulação em 2004 por provocar ataque cardíaco e por ter suas publicações de promoção de consumo aprovadas por médicos fantasmas.

No início deste mês, a Inglaterra, país considerado altamente rígido no que ser refere à regulamentação da forma, conteúdo e espaço de veiculação de publicidade dirigida ao público infantil, apertou mais ainda a proibição a comerciais de alimentos não-saudáveis. Não por ser contra as guloseimas, mas para proteger a infância do jeito enganoso como vinha sendo estimulado o seu consumo.

Agir sobre esses excessos não é questão de tutela, mas de dever de saúde pública. É o que está fazendo o Ministério da Saúde, com a criação de um fórum, inspirado em experiências internacionais bem sucedidas, como a do Canadá, no qual serão debatidos temas relativos à saudabilidade nos alimentos industrializados. Convenhamos que, por sua própria natureza, não é a publicidade a melhor conselheira na hora de comparação de atributos entre produtos e serviços.

Essa discussão toda me faz lembrar de uma maravilhosa sabedoria árabe sobre “o que diz o peixe frito”. Conta-se que dois amigos andavam pelo mercado, quando um deles apontou para um peixe frito e perguntou o que aquele peixe estava dizendo. O outro respondeu imediatamente que nada, pois o peixe estava morto. Foi quando o amigo mais atento teve a oportunidade de comentar que o peixe estava morto, sim, mas estava dizendo que, atraído pela gula havia desprezado a existência do anzol e mordera a isca. Por isso é que estava frito.

Muitas vezes, em nome da oferta de escolhas, a dignidade das pessoas é atropelada pela imprecisa compreensão do que seria um direito ilimitado de intrusão. Na publicidade a opção prevalece no aparente do oculto, onde as fronteiras da consciência se dissipam por perderem o senso do que deve ser contido ou não na prerrogativa de opinar. É neste ponto que se abre a discussão sobre escrúpulos na publicidade; se é possível distinguir alguma fronteira entre o interesse público e a criação de objetos de desejo.

A publicidade é um instrumento privilegiado de comunicação porque paga para dizer e normalmente não precisa passar por critérios editoriais. Esse poder de compra de espaço não pode, entretanto, ser confundido com vandalismo social, com algo à parte dos interesses sociais. Uma coisa é ter a liberdade de exercício pleno de criação e de veiculação; outra é fazer disso um aríete de corrupção da noção de cidadania no mundo do consumo. Perguntar “O que está dizendo o peixe frito?” é um exercício impreterível a todo instante e em todo lugar.

Nas festas juninas deste ano, uma logomarca de cerveja chamava a atenção no palco de apresentações colocado no pátio do colégio Santa Cruz, em São Paulo, e houve uma reação dos pais diante do que aquela placa de patrocínio dizia. Muitos ouviram o anúncio falar que, mesmo em um espaço de formação, ali estava sendo praticada a pedagogia do incentivo ao consumo precoce de bebida alcoólica, enquanto o País experimenta os primeiros sucessos da implantação da Lei Seca (Lei 11.705, de 19/6/2008), com vistas à redução da violência no trânsito.

De mais a mais, nota-se entre parte dos profissionais e das empresas do setor o aumento da preocupação com as inconveniências da publicidade abusiva. No IV Congresso Brasileiro de Publicidade, realizado em São Paulo, de 14 a 16 deste mês de julho, a intenção da ética aparece claramente nas recomendações da Comissão de Responsabilidade Socioambiental, que sugerem adesão a pactos que tratem de ética e do fomento a “uma cultura de consumo consciente e responsável”.

O ineditismo de precedentes relativos aos valores sociais e culturais no mundo da publicidade acabou criando deformações de entendimento do quanto deve valer o ser humano diante do que se faz. Com o aumento das faculdades e dos cursos de publicidade em todo o País, é provável que a discussão da ética ganhe corpo em um ambiente até bem pouco tempo marcado pelo narcisismo da sedução instrumental. A preparação da publicidade numa perspectiva de sustentabilidade passa pela ressocialização da figura do publicitário e por um condicionamento do mercado às novas tendências sociais.