No ambiente acolhedor do Bona, restaurante paulistano de culinária contemporânea que promove apresentações musicais em clima intimista, conheci Lenna Bahule (29). No palco cercado de mesas, a cantora moçambicana cantou o repertório do seu álbum Nômade, em companhia das também lindas vozes femininas de Luana Baptista, Lílian Rocha e Victória dos Santos, ao baixo de François Muleka e percuteria de Kabé Pinheiro.
Impactante a qualidade da sua música vocal de ressonância africana, cheia de suavidades harmônicas, ritmos envolventes e de firmeza de alma no cantar. A voz leve e profunda de Bahule explora possibilidades sonoras universais do infinito interior, com impressionante técnica polifônica feminina, improvisações e acompanhamento corporal percussivo e gestual.
No instrumento natural da voz, no som interno das emoções e na manifestação sensível da criatividade, mais do que originalidade sonora, o espetáculo encanta pelo alcance de consonância e beleza de uma cultura em estado de troca e território em movimento. Pakeleô (Lenna Bahule e Zé Leônidas) faz um intercâmbio de sentidos e emissão de sentimentos entranhados pelo cantar essencial.
Lenna Bahule canta normalmente em línguas africanas, e alguma coisa em português, haja vista que, assim como o Brasil, aquele país da costa sudeste africana banhada pelo Oceano Índico foi também colônia lusitana. Em Oração (Lenna Bahule), ela transforma os braços em pássaros enquanto entoa “Bela manhã / As aves cantam / Ação de graças do nosso Criador”, numa celebração à benção e ao amor divino.
O mesmo cunho de espiritualidade aparece na canção Solomoni (Lenna Bahule), à qual ela antecede contando o mito das mulheres que se diziam mães de uma mesma criança, e, ao serem colocadas diante da ameaça de receberem cada uma apenas uma banda do corpo do menino, a mãe verdadeira preferiu perder o filho a vê-lo morto; situação que teria levado o julgamento do rei Salomão a conceder a esta a guarda da criança.
A figura da mãe tem uma importância muito grande no âmago das culturas africanas e brasileiras. Na Ku Penda (Lenna Bahule) é um poema lírico dedicado à dignidade da mulher, da mãe querida, especial e única, vestido por uma amorosa textura de sons modulados em tonalidades orgânicas, viscerais e intuitivas.
Como lugar de boa mesa, comida com ingredientes orgânicos e casa de boa música, o Bona é também um espaço de boa educação, o que significa dizer que o serviço se torna bem discreto durante os shows. O silêncio da plateia só é quebrado quando o som pede participação de todo mundo, como na interpretação da Dança dos Pigmeus (Lenna Bahule), em que o público se integrou às palmas puxadas pelo grupo vocal.O momento percussivo de maior plasticidade nas canções vocalizadas do show Nômade é o da interpretação de Kupura, um canto tradicional de trabalho das mulheres do Malawi, da Zâmbia e da Tanzânia, países vizinhos de Moçambique. Luana, Lílian e Victória jogam peneiras de palhas percussivas e Lenna tira o som de uma cuia emborcada na água de uma bacia de alumínio.
Composta por músicas autorais e por um repertório de cantares africanos, a apresentação de Lenna Bahule foi farta em técnica de combinação de vozes, ordem melódica e rítmica, texturas sonoras harmônicas, floreios e improvisos numa pluralidade de agradáveis expressões da potência feminina.