Filhos do couro e do algodão
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 04 de Setembro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A agenda política brasileira está praticamente preenchida por temas referentes à questão rural, mesmo quando trata das crises urbanas das megacidades. As fronteiras agrícolas, territoriais e éticas, se estendem do agronegócio aos ecocombustíveis, passando pelas discussões de segurança alimentar, aquecimento planetário, MST e demarcações de terras indígenas. Nesse contexto, o livro Notas sobre a Formação Social do Ceará – 1680 a 1820 (Fundação Ana Lima, 2008), de Francisco Pinheiro, chega para contribuir com a clareza dos aspectos instituidores dessa agitação social e econômica.
As concepções históricas se alteram conforme o tempo político. O Brasil está criando as condições para ressignificação de sua identidade. Com a inflexão no processo político brasileiro, causada pela negação popular aos arranjos tradicionais de poder, o que possibilitou a eleição do presidente Lula, dar nitidez aos fatos do passado é um caminho para decifrar o futuro, na consolidação do nosso incipiente socialismo participativo. Essa sedimentação de tendências está presente em Fortaleza nos feitos aguerridos da prefeita Luizianne Lins, que também constrói uma liderança por fora dos interesses do conservadorismo.
Com esse livro Francisco Pinheiro, que além de professor de História é vice do governador Cid Gomes, colabora para a nova descrição do País, ao recriar o processo histórico cearense, cuja narrativa teve como endereço certo a imposição de uma esmagadora derrota à cultura nativa. Por ser uma obra sintonizada com as inclinações políticas do presente, a Formação Social do Ceará pode ser vista como um vasto painel que abre ao leitor espaços para a ação. A guerra de versões na História tem muitos nomes e sentidos. O que aconteceu é tão flexível quanto o que está por acontecer. O que antes era feito heróico pode ser confirmado ou visto, tempos depois, como genocídio. Memórias póstumas sempre podem trazer intensa voltagem política.
O livro de Pinheiro apóia-se na objetividade das documentações e em recursos subjetivos de angulações comparativas do contexto histórico. Evidencia dados desprezados pela historiografia subserviente e lança luzes em situações nas quais foram colocadas as sombras artificiais do discurso vencedor, construído no complexo e instigante período de 1680 a 1820, época em que a rejeição nativa às imposições coloniais foi taxada de inferioridade. A clareza sobre a intencionalidade do desgaste da imagem da gente nativa, dos negros escravos e das pessoas livres, chegadas por aqui, é fundamental para destravar a nossa dificuldade de integração.
A substituição do mito do vadio pelo da brava resistência pode recompor parte dos lapsos deliberados de memória, pela força transformadora do sujeito. Nesse trabalho de reparação histórica o autor relê os fatos e a vida cotidiana do seu período de estudo, registrada em documentos que restaram da sanha destruidora da nossa memória. De petições de sesmarias a anotações em autos de queixas, o historiador vasculha o estado prosaico da prática institucionalizada de construção de vantagens, fornecendo um lastro de conteúdos atraentes para as expressões artísticas, literárias, audiovisuais e da moda, que queiram reimaginar a história.
A “Formação Social do Ceará” é um livro que, se lido pelos cearenses, criará certamente oportunidades raras de reflexão sobre os nossos porquês. Numa sociedade ávida por respostas em um país que está mudando pela força de uma sofisticada democracia empírica, a altivez e o sonho tornam-se combustível de cidadania. Ao ler o livro do Professor Pinheiro fiquei pensando se o que nos dará resiliência para produzir uma nova utopia não será a satisfação de descendermos de uma gente que tem uma história de lutas e de resistência, que precisa ser honrada e, mais do que isso, que precisa ser transformada em vitória do bem-comum.
O recorte do historiador começa a desenhar a sua borda inicial em 1676, momento em que os criadores baianos e pernambucanos chegam ao Ceará para instalação de fazendas de gado. Os territórios em foco são os que margeiam os rios Acaraú e Jaguaribe, com suas saídas para o mar em porto fluviais. Nessa parte, o livro organiza discursos que configuram os conflitos entre os povos nativos e os pecuaristas durante a ocupação da Capitania do Ceará, no ciclo do couro.
No outro lado do tempo seccionado pelo autor, vê-se situações resultantes do confronto entre as economias do trabalho escravo, praticada nos canaviais de Pernambuco e a economia do trabalho dos livres-pobres, reforçada com a cultura algodoeira no Ceará, atendendo a uma demanda do setor têxtil inglês, que dava início, por volta de 1760, a Revolução Industrial. Para garantir ganhos substanciais, a Metrópole determinou que, a partir de 1799, o Ceará ficaria independente e poderia comercializar diretamente com ela, sem a intermediação de Pernambuco.
A preparação para o Ceará ser um centro produtor e exportador de algodão levou a estrutura de poder a não medir esforços para subordinar a população sem-terra a ser produtora de excedente. Pinheiro mostra com acuracidade histórica como se deu esse segundo confronto entre ocupantes e nativos. Ações coercitivas como a criação das vilas indígenas, da polícia de passaporte, que exigia o fichamento das pessoas e autorização para deslocamento, e o “privilégio” de morador como vínculo de subordinação, foram artifícios impostos nessa guerra de estilos de vida.
Merece destaque na obra de Francisco Pinheiro o cuidado com a explicitação das artimanhas desenvolvidas pelos invasores no estabelecimento de diferenciações sociais, principalmente no que se refere à forma como se deu a divisão da terra. A concentração fundiária, a posse de escravos e a condição de pecuarista foi o primeiro indicador de poder no Ceará. A institucionalização do domínio deu-se em uma circunstância na qual valia mais o poder do fazendeiro do que o poder governamental. Aos demais habitantes da capitania, restava a agricultura familiar e a subordinação derivada do acesso à terra na condição de morador ou de meeiro.
A espoliação das terras dos povos indígenas foi feita sob a alegação de que só podia ter propriedade quem a associasse à produção de renda para a Coroa Portuguesa. Ao reagirem com hostilidade a ações que tratavam de afugentá-los, destruindo suas malocas e seqüestrando mulheres, os povos nativos foram adjetivados de bárbaros. A aliança de fé e negócio, entre Igreja e Estado, tratou de impor uma permanente depreciação do modo de vida local, a exemplo da qualificação do ócio e do trabalho de subsistência como crime de vadiagem.
A história é uma construção das sociedades e a lei um instrumento de relação social. Temos urgência por uma história mais bem contada para entender melhor os parâmetros de justiça. O resgate da nossa essência nos tornará mais solidários. Encontrarmo-nos com o que realmente somos é uma maneira de tentar cultivar a civilidade que nos distingue e nos fortalece. Com uma história nas mãos sairemos mais rapidamente da condição de sobreviventes para dar sentido cultural, social e político às nossas lutas. E o livro Formação Social do Ceará é, nesse sentido, uma consistente fonte de consulta.