Governança e crise global
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 13 de Novembro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A reunião do G 20, realizada no fim-de-semana passado em São Paulo, com o objetivo de preparar Grupos de Trabalho que apresentarão sugestões de controle da crise do sistema financeiro mundial na reunião de cúpula de chefes de Estado, que acontecerá no próximo sábado em Washington, despertou em mim uma reflexão mais cultural e política do que econômica. Como um Van Gogh, que tirava luzes das paisagens mais sombrias, fiquei propenso a pensar que estamos diante de uma sofisticada oportunidade de ampliação da democratização do comando econômico mundial e da reinserção do sentido real da economia na sociedade.
O que se chama de bolha nesse episódio é a circulação de uma dinheirama que não existe, gerada por transações especulativas de toda ordem. O estouro da bolha norte-americana fez desaparecer parte significativa da “riqueza” do “primeiro mundo”, preservando os seus infelizes consumidores. É como se fosse uma bomba de nêutron reversa, considerando que esta arma de destruição em massa elimina as pessoas e deixa seus bens para o usufruto do vencedor. Este fato demonstra que o dinheiro magnético é uma falsificação da abundância.
A economia vinha ganhando a cada dia um ar de isolamento deificado, como se não fizesse parte da cultura, da educação e da política. Sentindo-se absoluta, saiu dos próprios limites e, como uma cobra quando perde a peçonha, engoliu o próprio rabo. O baque da queda do neoliberalismo deve fazer um realinhamento entre o dinheiro magnético e o dinheiro de papel. Essa crise nos traz a oportunidade de alterarmos o nosso comportamento, de forma a sermos menos consumistas, menos auto-enganados e para prepararmos a transformação do cotidiano pelas longas ondas da preguiça do tempo.
O mundo perdeu a referência do que pode ou não ser chamado de riqueza. Com a crise que veio da terra dos ricos rompeu-se um princípio elementar do sistema financeiro, que é o de não fazer empréstimos a quem não pode pagar. O tamanho do dinheiro caiu pela metade por toda parte. O maior mercado consumidor do planeta está liso. As ameaças mais prováveis, por enquanto, são aquelas associadas ao aumento do protecionismo das grandes potências. Os Estados Unidos e a Europa podem muito bem tentar fechar as fronteiras para barrar o crescimento da China e, por sua vez, a China, que atualmente tem o maior poder de compra do mundo, pode tomar a decisão de parar de demandar.
As grandes corporações que determinam os rumos da política dos Estados Unidos tiveram que, a contragosto, pensar seriamente na eleição do senador Barack Hussein Obama, como antídoto simbólico à desgasta imagem daquele país sem nome. Na hora da sobrevivência, vale tudo, até mesmo um presidente mestiço, puxado para o negro, de origem muçulmana e que tem Hussein no nome. Sei não, mas ironicamente, esse cheiro de solvente de napalm, de gás mostarda e de agente laranja, parece coisa de fantasma do finado Saddam Hussein que, por acusação não comprovada de ter armas químicas, foi enforcado como conseqüência da desastrada invasão do Iraque.
Pelo motivo que tenha sido, vale a pena observar a eleição de Hussein, o Obama, para a Casa Branca, como uma ruptura com o preconceito e como um elemento gerador de esperança no diálogo das civilizações. Nos EUA, entre a melancolia da ideologia do consumismo e a ansiedade da população por uma espécie de “bolsa imóvel”, sua eleição representa novas expectativas para quem perdeu a casa, está perdendo o emprego, a aposentadoria e talvez não vá mais se sentir superior por poder produzir lixo desnecessário. Em países como o Brasil, o fórum do G20 identificou risco de recessão (redução do crescimento) e isso alerta para a necessidade de criação de mecanismos capazes de interromper a saída de capitais e impulsionar o desenvolvimento.
Respiro aliviado quando penso que o Brasil irrigou bem o seu mercado interno, que está com reservas superiores à dívida externa, que não caminha mais à reboque dos pacotes do FMI (Fundo Monetário Internacional), nem do Banco Mundial e que parece atento à ameaça de redução significativa de arrecadação das commodities (aço, carne, grãos, celulose etc) que, conseqüentemente afetará o nível das nossas atividades econômicas. Quem for pessimista que se dane, eu estou achando bonito o Brasil com a cabeça erguida, propondo saídas para a crise e, mais do que isso, propondo ampliar a base democrática da governança global.
Em um documento corajoso e imbuído de profundo senso democrático, o governo brasileiro pôs na pauta da reunião de São Paulo que “o G7 não apresenta condições de liderar, de maneira efetiva, os principais temas mundiais”. E propôs que o G20 possa assumir papel mais relevante na coordenação das decisões referentes às economias locais e globais. Os governantes do G7 olham com reticência para essa prerrogativa, mas pelo menos o fato de já se poder entrar abertamente nesse jogo de estica e puxa da dinâmica geopolítica é um avanço. O crescimento econômico do mundo está acontecendo fora do território desses países, mas eles insistem em manter o privilégio de serem capitalistas no lucro e socialistas nos prejuízos.
O G7 é formado pelos Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Canadá e vira G8 quando conta com a participação da Rússia. Eles se juntam para se institucionalizar como autoridades supranacionais, começando pela economia, para chegar um dia ao controle da água, das florestas e das sementes alimentícias e bioenergéticas. É tão séria essa questão que mesmo abalados pelo sinistro do espocar da bolha financeira, pela qual são responsáveis, resistem em ampliar o peso político de outros países nas discussões internacionais.
Em todo o mundo existem mais de duas centenas de países, incluindo os territórios ocupados e aqueles não reconhecidos pela ONU (Organização das Nações Unidas). Para ser democrático mesmo, o mundo teria que ter um G200. A proposta de ampliar para o G20, que detém cerca de 89% do PIB (Produto Interno Bruto) de todo o planeta, é até bastante comedida. Mesmo assim, causa pavor ao G7/G8. E olhe que Alemanha, França, Itália e Reino Unido se repetem nos subgrupos do G20, tanto na lista de 19 países dos diversos continentes, como na representação dos 27 países da União Européia.
O momento é fértil para inquietações. Mais do que há duas décadas quando houve a queda do muro de Berlim. Naquele momento, o capitalismo irreal cantou vitória com a derrocada do socialismo totalitário. Com a atual crise, o mundo está percebendo que os dois santos da Guerra Fria (conflito entre os ex-EUA e a ex-URSS) eram do pau oco e somente agora se encerra um ciclo desses dois pólos. A diferença é que agora não há uma doutrina aparecendo como vitoriosa. Para salvar suas economias, os próprios países do G7, que defendem o fundamentalismo de mercado, estão estatizando bancos e salvando a iniciativa privada com dinheiro público.
O professor Paulo Bonavides tem apontado na sua lucidez octogenária para o surgimento do “Estado neo-social”, nem mínimo, nem máximo. Nessa oportunidade de aproveitamento dos princípios republicanos na governança global, ele afirma que “O porvir da humanidade no mundo convulsivo de nossos dias há de pertencer a uma sociedade de inspiração emancipadora, volvida para concretizar valores postergados da justiça, da liberdade, da democracia, da fraternidade” (FSP, 6/11/2008). Acrescida das dimensões políticas contemporâneas, tais como a questão do cuidado com o meio ambiente e a preservação da cultura da infância.