Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Domingo, 11 de Janeiro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Monteiro Lobato (1882 – 1948) foi um escritor e um empreendedor de personalidade essencial para o auto-reconhecimento e dinamização da cultura brasileira. Como sonhador pragmático, idealista perturbador e cidadão destemido ele se valeu do caráter fantástico da realidade para temperar a existência e trabalhar pela invenção do Brasil. Tratava dos mais variados temas, desde que eles convergissem para o desenvolvimento do país e para a o bem-estar dos brasileiros.
Ele poderia ter optado por ser apenas um festejado escritor de sucesso, com dinheiro no bolso, garantia de prestígio e cadeiras nas mais diversas academias. Não seguiu esse caminho porque sabia que ser feliz é muito pouco. Queria ser importante em um país importante. E talvez ele nem fosse o escritor referencial que é se não tivesse levado ao livro os segredos da sua inquietação transformadora.
Lobato se olhava por cima dos próprios ombros e se deixava olhar pelas crianças à altura dos seus olhos. Conseguiu de maneira singular tornar a realidade algo apreensível, fazer com que ela fosse vista por dentro e por fora do observador. Assim, procurava demover da cabeça de muitos brasileiros a fatídica mentalidade de colonizado.
Ponderou o imponderável. Era um político, não das siglas partidárias, mas da sociedade civil. Movido a desejo de viabilizar as coisas, de encontrar soluções compatíveis com a decência nas interrelações, idealizou um mundo incompatível com a natureza dos padrões políticos e econômicos que encontrou na sua infância.
Queria viver em um país de leitores, de cidadãos que pudessem quebrar a inércia colonial e empurrar a sociedade para a inovação, para a invenção do futuro. Criou o Sítio do Picapau Amarelo para nele dialogar com as crianças, não se passando por uma delas, mas como um adulto que as respeita, que tem histórias para contar, que quer contar porque acredita em suas crenças.
O segredo da literatura infantil de Monteiro Lobato deve-se principalmente ao fato de que ele tinha o que contar e tinha vontade de fazê-lo porque sabia que com isso estaria contribuindo para o desenvolvimento do espírito crítico e da autonomia na capacidade de discernimento das crianças. E fazia isso por acreditar na força da inventividade, da iniciativa, da afetividade, da beleza, da cooperação e dos encantos de um lugar umbilical.
Acompanhado da Dona Benta, do Pedrinho, Narizinho, Tia Nastácia e Emília, convidou às crianças a freqüentarem o espaço de brincadeiras do Sítio, para o exercício da curiosidade, da criação, da contestação, da sabedoria popular, da liderança do feminino, da natureza, da sustentabilidade, da convivência e da aventura.
Com isso, Lobato altera os mais destacados conceitos de necessidade básica. Diferentemente do economista indiano Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de 1998, que propaga o “desenvolvimento como liberdade” para a superação da fome, da miséria e do mal-estar social, o autor do Sítio do Picapau Amarelo inventou em sua síntese de brasilidade a condição de “liberdade como desenvolvimento”.
A vontade transformadora predominante no ambiente do Sítio guarda um traço ainda tímido de brasilidade que, para nos diferenciar e nos dar vigor enquanto sociedade, um dia aprenderá a popularizar o Brasil para os brasileiros. Monteiro Lobato deixou, entre outros, esse legado como recurso estético e utópico, contanto, político.
Os escritos de Lobato comprovam que a chamada literatura infantil e juvenil é coisa de gente grande, no sentido de grandeza cultural, de valor enquanto obra e não apenas como entretenimento, lazer ou instrumento para-didático. O potencial de significados dos seus livros torna as páginas férteis do Sítio verdadeiros espaços de livre circulação do ser integral, imaginativo, pleno, apto a reelaborar, reler, redescrever o passado e reconstruir o futuro.
O que há de mágico na literatura infantil de Monteiro Lobato é que ela foi dirigida aos adultos que as crianças se tornariam. E essa é uma condição subversora que se estendeu aos horizontes da formação da consciência nacional e ao caráter de sociedade aberta que enseja diferenças comparativas ao Brasil no exercício do diálogo global.
O Sítio da Dona Benta é um espaço de convivência dos saberes em diferentes domínios. Ali convivem naturalmente o adulto e a criança, o erudito e o popular, o científico e o leigo. A intersubjetividade do viver, do ser, do conviver e do conhecer parece posta a serviço da convicção de que mudando a consciência muda-se a sociedade.
Muita gente diz que Monteiro Lobato tinha o dom de prever o futuro, mas eu diria que o seu dom mais apurado era o de construir o futuro. Além da luta pelo ferro, pelo petróleo, pela leitura e da percepção de que o crescimento do choque étnico estadunidense geraria um presidente negro, bem como a própria criação do Sítio, como um ambiente síntese do Brasil em moldes pouco tradicionais, é uma invenção do futuro e não um ato de vidência.
Foi com o aprofundamento na essência cultural do país que Lobato organizou um lugar imaginário onde a construção da vida em sociedade pode ocorrer fora dos meandros da autoridade repressiva. No Sítio do Picapau Amarelo a criança não receia ter dúvidas ou brincar com pontes que a levem pela narrativa cognoscível, autopoiética, renovadora de visão, e instigadora do pensamento livre, criador do futuro.