Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 22 de Janeiro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A língua portuguesa, diferentemente da espanhola e da francesa, ainda não tinha uma unidade ortográfica que assegurasse a sua robustez como patrimônio social e histórico, comum aos diversos países onde é falada. Agora tem. Calcula-se que cerca de 230 milhões de pessoas usam o português como língua oficial em oito países de quatro continentes.
O quanto mais rápido pararmos de discutir se o acordo deveria ou não existir e partirmos para fazer as adaptações que ele requer, menos desconforto teremos na convivência entre a ortografia que sai e a que chega. Neste aspecto, a contribuição dos segmentos de informática e internet será fundamental, sobretudo quanto aos verificadores ortográficos e editores de textos.
O BrOffice já disponibilizou gratuitamente um corretor de palavras aos seus usuários e a Microsoft está prometendo liberar indicadores de correção em seus pacotes de atualização, dentro dos próximos anos. A nova edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Volp, editado pela Academia Brasileira de Letras, ABL, em parceria com instituições semelhantes dos demais países que assinam o acordo está prevista para o próximo mês de março.
No Brasil, onde o acordo entrou em vigor logo no inicio deste mês de janeiro, e tem período de implantação previsto para dezembro de 2012, a grafia das palavras que utilizamos foi alterada em apenas meio por cento. Porém, independente do quanto muda em cada lugar, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste estão dizendo com isso que não é só mercado que se precisa ter em comum; a língua é também um instrumento de vinculação entre as nações, como é o caso das Comunidades dos Países de Língua Portuguesa, CPLP.
Aceitamos com facilidade a divisão cartográfica dos continentes sem, no entanto, observar o tanto que ela divide essencialidades e aproxima diferenças por simples classificação geográfica que, na verdade, são meras invenções políticas. Assim como os limites geográficos, as fronteiras étnicas, culturais e sociais não eliminam as possibilidades dos exercícios de coletividade com base lingüística. A prática mais comum desse zoneamento de relações pela língua tem sido aquela imposta pelo poderio militar, econômico e tecnológico.
Na vida das nações colonizadas, essa experiência foi intensamente aplicada pelos países europeus a partir das grandes navegações (século XV) até a Segunda Guerra Mundial (século XX), quando o domínio cultural teve seu comando assumido pelos Estados Unidos e o inglês passou a ser a língua das transações internacionais. O acordo ortográfico da língua portuguesa é uma forma de rompimento com essa situação de subserviência lingüística e um mecanismo de criação de novos modos de estruturação de relacionamentos fora dos parâmetros instituídos por razões de explorações coloniais.
Ao fortalecerem a língua como elemento comum em sociedades da Europa, da América, da Ásia e da África, os países signatários do acordo ortográfico da língua portuguesa estão se redesenhando no mapa-múndi, não com a pretensão de unidade, mas com a determinação de estabelecimento de nodos de interlocução na cadeia discursiva mundial, integradas por uma teia de significados históricos extra-continentais.
O acordo define percursos de circularidade que vão além da sua importância comercial e diplomática. A criação de um alinhamento na forma de escrever a língua portuguesa no mundo, respeitando a diversidade de pronúncia de cada povo, deve ser observada bem para lá do seu viés normativo, principalmente quando se trata de sentido político de superação do servilismo cultural e de fuga dos padrões de esforços regionais por autonomia. Ele é um sinal de afirmação cultural diante da influência preponderante da economia na ordem mundial.
Do mesmo jeito que a busca por redução da dependência vem sendo feita por muitos países por motivos econômicos, o que, por exemplo, tem levado o Brasil a traçar novas rotas de comércio que vão da Malásia à Turquia, passando pela Rússia e pela África do Sul, a construção de novos laços por afinidades lingüísticas é uma opção inteligente de contribuição para a necessária reformulação do sentido das relações entre as nações.
Esse tipo de movimentação política sofre naturalmente toda sorte de reação, bordeada pelos interesses contrários dos países com maior acúmulo de riquezas elaboradas, que vêem seus padrões ameaçados, e das nações que mais recentemente conquistaram a independência, e ainda amargam as dores da imposição do português como “língua oficial” das suas gentes. As emoções em casos como o de Angola, Moçambique e Timor Leste ainda estão à flor da pele e isso normalmente dificulta a compreensão da indispensabilidade desse acordo.
Realmente não é fácil assumir de bom grado a língua de qualquer colonizador. Acontece que nem o português que chegou às colônias é mais o mesmo, nem Portugal representa mais qualquer ameaça de dominação. Hoje, o termo “português” é uma marca de fantasia da língua falada nos oito países do acordo e de algum modo em mais outros tantos lugares como Macau, Goa, nas zonas de fronteira do Brasil e em Benin, para onde retornaram muitos africanos depois da abolição da escravatura.
O acordo ortográfico não tira a subjetividade nem a auto-identificacão dos países que o estão adotando. Pelo contrário, o efeito transcontinental de uma voz comum potencializa a consciência imaginativa e afetiva da nossa memória social. No Brasil, o português entrou em permanente fermentação com as línguas nativas e de outros colonizadores, como holandeses e franceses, sem falar no enriquecimento ofertado pelas línguas e dialetos das levas e mais levas de escravos africanos e de imigrantes europeus que chegaram ao país no final do século XIX para as primeiras décadas do século XX.
O assemelhamento ortográfico abre uma perspectiva simbolizante do poder do intangível na formação de um mundo multipolar. O fato dos países vinculados pela língua portuguesa estabeleceram normas para intercurso comum, escancara também um fértil campo para a valorização das demais línguas existentes nesses países, como matrizes fundamentais dessa “língua geral” sedimentada com contribuições do latim, misturada com línguas germânicas e modificada ainda na raiz pela cultura árabe, antes de conviver e de entrar em conflito com línguas de todo o mundo, através das navegações e da exploração colonial, com o nome de Português.
Embora com muita confusão entre línguas e dialetos, o Brasil ainda tem, como suporte ao português mestiço, cerca de duas centenas de línguas nativas, africanas, européias e asiáticas. A constituição histórica do país, por meio da linguagem, tem um viço miscigenado fortemente presente nos falares de quase toda a população. Bom lembrar que, assim como os povos indígenas trazem variedades entre si, o mesmo tem seu histórico nas fusões de dialetos nas comunidades africanas e de imigrantes.
Se novos agrupamentos econômicos, comerciais e políticos estão em franca construção na atualidade, nada mais natural que se criem também blocos de afinidades lingüísticas para o desenvolvimento de atividades de cooperação internacional. A língua é um bem cultural indispensável para a representação da multipolaridade e dos espaços de multilateralismo que são cada vez mais necessários na reconstrução do mundo.