Fosse seguir a ordem da assimetria social reinante em nosso meio, o menino Mário Sanders não teria se tornado o artista plástico transgressor e necessário que se tornou. Só ele e a mãe Alzira sabem o que foi conquistar um lugar ao sol, desenhando com estilo próprio, saído do interior do Ceará e, depois, da periferia de Fortaleza, para correr o risco de ser o que é em sua essência.
Reconhecido, premiado e respeitado nacionalmente, ele recebeu na manhã do sábado passado, 6, no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC), amigos, parceiros e admiradores para um café de lançamento do seu livro Correndo o Risco, produção da Lumiar viabilizada pelo Edital das Artes de Fortaleza, da Secultfor. A presença ativa dos filhos Pedro e Vitória enfatizou as particularidades sensíveis da poética daquele momento de celebração.
Embora esse título expresse o sentido que o autor imprime à sua caminhada pelo meio fio das vias por onde andou e por onde anda, salvo pelo traço em um mundo pouco afeito ao brilho dos que são verdadeiros, a mensagem-força da capa está mesmo é no nanquim com detalhes de pés em posição de enforcado, anunciando o que as páginas oferecem de específico e distinto para o leitor.
Sequenciado em cinco partes, o livro não prescreve impulsos, apenas organiza os ciclos de renovação artística e técnica do autor, desde suas primeiras inspirações na arte nordestinada e universal de Aldemir Martins (1922 – 2006) até a pintura digital, com passagens por suas vivências no inflexivo grupo Fratura Exposta e por seu trabalho entre os pioneiros da ilustração reflexiva do jornalismo cultural brasileiro.
Acompanho com admiração toda a trajetória de Mário Sanders em suas mais de três décadas de inquietação criadora. Por muitas vezes tive o privilégio de contar com sua arte em meu trabalho, como nas belas ilustrações do livro Bulbrax – Sociomorfologia Cultural de Fortaleza (Armazém da Cultura, 2017), uma das referências escolhidas pelo artista para o seu livro. Sem contar da minha satisfação de integrar o grupo de autores dos textos, ao lado de Dante Diniz, Dodora Guimarães, Jackson Araújo, Roberto Galvão, Albanisa Dummar, Augusto César, Casimiro Mendonça e Clarisse Ilgenfritz, que fez a amorosa apresentação biográfica.
Em seus desenhos, Mário Sanders faz surgir o objeto sem gente, a imagem da conduta e não da pessoa, a ocasião e não o ladrão. Ele descontextualiza a coisa para torná-la exemplar, concebível enquanto artifício do cotidiano vulgar. Faz isso em tramas gráficas do trágico e do sublime manifestados nas partes perdidas de um todo de uma sociedade que não sabe para onde vai. É a arte fragmentando a realidade em temas de riscos firmes e maleáveis em seus estudos de pulsão vital.
O artista não parece querer modelar a vida, e, sim, libertá-la das formas que lhe tiram a fluidez. Sempre surpreende ao destacar com beleza a plasticidade de movimentos, expressões e símbolos sociais que faz migrar das ações para as mais variadas superfícies. As peças que Mário Sanders tira da rotina e joga aos quatro ventos explodem como estilhaços de comportamentos, abrindo à estranheza elementos de afetação da banalidade e da banalização da vida. O artista revela em sua obra que nem tudo o que parece familiar é feito de familiaridades. E segue correndo risco por isso.