Foi uma imagem de lua cheia que primeiro chamou minha atenção ao segurar nas mãos o álbum Canções Para Pescar Almas, de Lucina e Bené Fonteles, que chega a este 2019 em sons ritualísticos cheios de paz. Uma lua disposta na contracapa, a sugerir intimidade poética com o céu, em papel de textura goiana de Miriam Pires. Vi, por alguns instantes, o clarear da lua de papel artesanal que a artista plástica bauruense Diva Elena Buss fez, uma a uma, para o primeiro disco de Bené, Benedito (Bendito), em 1983, por onde navegava também a música de Lucina.
Um texto assinado pelos dois fala que essa parceria é um presente do tempo maduro de uma amizade curtida na lealdade amorosa e na vontade profunda de “fazer um mundo mais leve e harmônico com uma consciência desperta pelo justo e pela beleza”. Tais composições de luz e de fé foram gravadas na Casa dos Passarinhos e no Estúdio Cajueiro, em Campinas. Das doze faixas, apenas Só Yara, um canto ao “estandarte lar de nossas crenças pagãs”, foi produzida no Estúdio Palco, no Rio de Janeiro, para facilitar as participações especiais do violão de Gilberto Gil e do piano de Egberto Gismonti.
O artista visual e sonoro Bené Fonteles nasceu no Pará, mas a vivência ondulante do seu lema “Antes Arte do que Tarde” tem vertentes cearense, pantaneira e brasiliense. A compositora e cantora Lucina é mato-grossense, e ficou conhecida por seu trabalho em dupla com a carioca Luhli (1945 – 2018), com quem gerou a antológica canção Bandoleiro: “Fossem ciganos a levantar poeira / A misturar nas patas terra de outras terras / Ares de outras matas” semeando campos de mentes e espíritos com encanto, sonho, fantasia, viagem e miragem.
Os movimentos de interioridade criadora de Lucina e Bené revolvem valores esquecidos, como na música Dê Flor: “Poética / eu sempre tive / uma queda por ética / Estética (…) E quando estiver estressado / faça como uma árvore / Dê flor!”. Esse trecho me fez lembrar do projeto Flores no Caminho, da médica ítalo-brasileira Floriana Bertini, em manifesto sensível de que a alma existe. Ou na faixa Um Sol: “E há vida a um palmo da tristeza / e há morte a um passo da alegria”, remetendo à linguagem gráfica infantil feita de rabiscos espontâneos do sol na amplitude dos gestos, como modo de estar no mundo.
E caí na rede de pescar lançada por Lucina e Bené, ouvindo outros versos, como nos cantos dos galos do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999). Em Mar Não Se Explica, prendi-me à expressão “Oceana-se nele”, e mergulhei na canção O Mar, do compositor português Pedro Ayres, interpretada pela cantora baiana Rebeca Matta no álbum Tantas Coisas (1998): “Não é nenhum poema / O que vos vou dizer / Nem sei se vale a pena / Tentar-vos descrever / O mar, o mar…”. São imagens de grande escala, de infinitude.
O álbum Canções Para Pescar Almas é o registro de um encontro que leva a muitos outros encontros poético-musicais, desde referências bossa-novistas até instantes de prosa e violar caipira. “Eu presto muita atenção / na arte dos outros”, cantam Lucina e Júlia Borges em A Arte dos Outros. Novamente vou ao encarte de Benedito, onde uma frase do compositor francês Hector Berlioz (1803 – 1869) recomenda que não devemos separar a música do amor porque “são duas asas da alma”. E até mesmo porque precisamos delas para contemplar abismos.