Fui até a ilha de Burano, a 45 minutos de Veneza, na Itália, atraído por seu famoso museu de renda (Museo del Merletto). Antes mesmo de desembarcar fiquei maravilhado com a arquitetura de casas coloridas cortadas por canais em trançado de pequenas pontes de madeira por onde circulam os barcos da vida local. A bem da verdade, o lugar é todo um museu aberto, um recanto de bordados.
Neste período de verão, as portas das casas são cobertas por longos tecidos esvoaçantes e as janelas de madeira e vidro exibem delicadas rendas como cortinas internas e vasos de flores na parte de fora. Tem gente de verdade morando ali; que o digam os varais externos e de quintais com roupas penduradas por toda parte. Burano é uma comunidade de sentido com cerca de quatro mil habitantes, uma vocação clara, praças arborizadas, uma coloração quente, uma vida simples de pescadores, uma igreja com a torre inclinada, um comércio aquecido e um turismo permanente.
Ao longo dos calçadões de cimento diversas lojas expõem peças com variados tipos de pontos e modos de fazer, inclusive de renda de bilro, como a do Ceará. A buranela é uma arte ornamental com temas desenhados em um papel tipo manteiga fixado no linho sobre uma pequena almofada. Com habilidade e paciência, senhoras do vilarejo tecem o tradicional ponto no ar (punto in aere), um artesanato feito com agulha e fio de linho, que lembra o modo de fazer o nosso bordado de labirinto.
Via de regra, a feitura da renda está associada à atividade da pesca; tem a ver com as redes lançadas ao mar e com a espera por parte das mulheres dos pescadores. Era comum também em conventos, orfanatos e hospícios, tendo ganhado expressão econômica no comércio veneziano no final do século XV. No século XVII, produtores de rendas buranianas mudaram-se para a França a fim de ensinar a técnica, esvaziando o mercado italiano, mesmo quando a realeza e a nobreza europeia adoravam usar renda em quase tudo.
Com a revolução francesa (1789) e a decadência das cortes, o uso de renda deixou de ser aspiração, o que arruinou ainda mais a produção da ilha. Foi quando, percebendo a trágica situação, uma condessa chamada Andriana Marcello resolveu apostar na revitalização da renda de Burano. Mobilizou um político (Paolo Fambri), uma financiadora (Princesa Giovannelli), uma promoter (rainha Margherita de Savoy) e uma velha rendeira (Vincenza Memo ou Cencia Scarpariola) e, em 1872, criou uma escola (Scuola di Merletti) para a popularização da delicada renda e a formação de um núcleo produtivo, socialmente sustentável.
No livro Il Museo del merletto (2011), a pesquisadora italiana Doretta Davanzo Poli resume o museu, que funciona no mesmo prédio daquela escola: “O Museu de Burano conserva e exibe criteriosamente um precioso acervo de toalhas de mesa e lenços, golas e luvas, colares e paramentos litúrgicos, leques e guardanapos, a fortuna da função da arte através de seus esplendores e suas crises, seus sofrimentos e renascimentos” (p.10). Para ela, essa é uma epopéia que envolve zelo e glória e que vai além das necessidades do turismo ou do comércio.
E antes de pegar o ônibus aquático (vaporetti) de volta, conseguimos uma disputada mesa para saborear os deliciosos frutos do mar e vinhos do charmoso Gato Preto (Trattoria Al Gatto Nero), um dos charmes dessa encantadora cidade-museu.