Automutilação e falso desejo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 26 de Fevereiro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
As fotos da barriga e das pernas de Paula Oliveira, 26 anos, que apareceram no noticiário do início deste mês de fevereiro, mostrando o corpo da brasileira marcado com a sigla de um partido conservador suíço me deixaram pensativo por esses dias. Ela teria declarado que as inscrições feitas por estiletes, em um suposto ataque de skinheads (neonazistas), aconteceram na estação de trem de Dübendorf, na Suiça, levando-a a abortar uma barriga de gêmeos. Depois as autoridades suíças teriam feito uma campanha mostrando que tudo não passava da farsa de uma estrangeira que queria dar o golpe da indenização por danos morais.
Falsa denúncia de agressão? Falsa gravidez? Necessidade de ficar rica por ato de esperteza? Vontade de ficar famosa, de ser convidada para posar para a revista Playboy? Automutilação? Ato premeditado? Crime imaginário? O que é falso e o que é verdadeiro na fala de Paula e na voz do estado suíço? Haveria aí uma situação de simultaneidade entre verdade e mentira?Todas as constatações apresentadas têm em comum o fato de nos levarem a conclusões contraditórias sobre o ocorrido.
A discussão sobre a possibilidade de algo ser verdadeiro e falso a um só tempo vem da antiguidade e tem como principal referência o Paradoxo do Mentiroso. Esse paradoxo, que séculos antes de Cristo já atraía a atenção dos filósofos, pergunta: “Mentes quando dizes que mentes?”. Se o mentiroso responde que sim, não estaria mentindo, pois afirmar que mente é uma verdade. De outro modo, se o mentiroso responde que não, seria verdadeiro que mente, por conseguinte, estaria mentindo.
Espelhei o caso da Suiça e de Paula numa interpretação que envolve as figuras de Sócrates e Platão. No lugar de Sócrates, coloquei Suíça (ambos começam com a letra “S”) e no lugar de Platão, pus Paula (ambos começam com a letra “P”). Ficou assim: a Suiça diz: “O que Paula diz é falso”. Paula diz: “O que diz a Suiça é certo”. Se aceitamos que o que a Paula diz é falso, então o que diz a Suiça é verdadeiro. Porém, se a Suiça afirma que Paula mente, por conseguinte o que a Suiça diz é falso. Neste paradoxo, a única conclusão que se pode chegar é a de que a Suiça diz a um só tempo coisas verdadeiras e falsas.
Adotei a premissa do verdadeiro e do falso concomitantes para orientar a minha percepção de que, mais do que um reflexo da onda neonazis que ronda a Europa, esse caso pede uma discussão conceitual sobre a sensibilidade perante o atual senso de desejo. A automutilação é um sinal de irracionalidade e de transtorno psicológico, mas pode ser também de ansiedade em transe e de impotência de consumo. Automutilar-se dessacraliza o corpo e afirma uma postura de busca de algo que seria mais inviolável do que a carne, a pele e o ser.
Assim como tem sido pregado o fim da história, o fim do autor e o fim das identidades, o fim do corpo significa a sua identificação como objeto inútil e desprezível. Os sinais do que dessa pós-humanidade aparecem com certa nitidez na confusão que tem sido feita entre as projeções de máquinas inteligentes e seres humanos robotizados. Aparecem também nas instalações, vídeos, fotografias e performances de “bioarte”, como poderiam ser classificadas as imagens das pernas e da barriga de Paula, feridas por estiletes. As exposições de bioarte são caracterizadas pelo uso do corpo nu e mutilado do “artista” e sua interação com outros animais, sobretudo animais mortos.
A instalação de microchips no corpo e a manipulação de tecidos humanos para “fins artísticos”, também usuais em exposições de bioarte, são manifestações de um redesenho ético que se contrapõe aos parâmetros insustentáveis do corpo “sarado”, do corpo perfeito, em seus traços modelados pela moda e pela moral do fitness. Paula Oliveira está na fronteira dos desejos de uma jovem que saiu do seu país em busca do mito do “primeiro mundo”, mas vive o drama do preconceito étnico, à medida que avança rumo a uma faixa etária na qual o corpo, por mais “bem trabalhado” que seja, já não responde ao modelo imposto pelo falso senso de juventude.
A silhueta da sua barriga supostamente grávida de gêmeos e as estúpidas marcas de ódio neonazista é bioarte, mas também é pichação. O pichador nega o corpo da cidade pela negação do muro, das paredes, do espaço construído. São expressões que aparentemente não querem dizer nada. Ferram as fachadas, não pelos mesmos motivos proprietários com que se ferravam o gado, mas para demarcar território. Caso tenha falado a verdade ao mentir, Paula foi verdadeira ao recorrer a essa lógica para marcar em si as siglas do Partido do Povo Suíço (SVP).
Em leitura posta numa perspectiva social e não pessoal é possível deduzir que todas essas provocações negam as normas do simulacro pelo desejo de fazer parte dele. É difícil desconfiar que uma celebridade não seja modelo em um tempo que artistas blogueiros poluem o ciberespaço de superficialidades. Se eu fosse nominar a arte da celebridade instantânea que está implantada na mente das pessoas, eu a chamaria de “suicidarte”. E ilustraria o meu conceito com o caso do garoto de 19 anos que matou oito pessoas e feriu outras cinco no shopping de Omaha, nos Estados Unidos, para, em seguida tirar a própria vida, deixando a seguinte frase escrita em um bilhete: “Agora serei famoso”.
De onde nasce o espaço para a construção desse tipo de fantasia, senão da economia do desejo que tem pautado o estilo de vida contemporâneo? A “bioarte” de Paula me fez migrar o olhar do corpo objeto para a imagem do sujeito fotografada na vítima fascinada pelos insistentes convites ao desfrute do que é apenas ilusão. Entre os sinais de automutilação e de xenofobia daquelas fotos me deparei com uma oportunidade de observação crítica dos valores ou desvalores que estão orientando ou desorientando nossas atitudes enquanto sociedade.
Tem sido comum nas páginas policiais a presença de jovens bonitas e ricas na delinqüência. Recentemente uma outra Paula, estudante de direito carioca, com cerca de vinte anos, ganhou seu prêmio de visibilidade por comandar assaltos com um carro que ganhara do pai e por postar vídeos e fotos na internet, manipulando armas e brincando de chuva de dinheiro. Uma das razões identificadas nesse tipo de delinqüência é a procura por respeito e admiração. Mas conceitualmente essa violência não se difere do sucesso de “não comer” das vítimas da anorexia e da bulimia, quando a automutilação por meio de distúrbios alimentares também é promovida por falsos desejos.
No espaço da iconosfera, a eloquencia dos fatos nos alerta para escutarmos o que está se passando nessa transição de felicidade rasa e sua ponte de alienação, por onde trafegam as movimentações dos velhos darks, que viraram góticos e hoje são emos, negando a vida que desacreditam pela negação de si mesmos. Emo é um termo que vem da palavra inglesa “emotional” e uma derivação da cena musical punk de décadas atrás.
O que a chocante história de Paula na Suiça nos mostra é uma síntese do que se poderia chamar de urgência dos tempos, quando o prazer metafórico parece mais desejável do que a satisfação da vida na realidade objetiva. A renúncia ao corpo e ao ser diante da satisfação de sentido figurado prova o avanço do esgotamento do humano em um cenário de domínio do desejo inatingível e consagrado pela virtualidade, pelo supérfluo, pelo privilégio da esperteza em busca de ascensão social e por uma estranha forma de se relacionar com o outro, que pode ser uma pessoa ou uma nação.