Lei de cultura e democracia
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 21 de Maio de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Os principais pontos da necessária mudança que o Ministério da Cultura (MinC) está se dispondo a fazer no sistema de fomento e financiamento da cultura brasileira serão apresentados amanhã, sexta-feira, dia 22, na Assembléia Legislativa do Ceará (14:30) pelo ministro Juca Ferreira. De 23 de março a 6 de maio, o anteprojeto foi exposto a consulta pública e os resultados dos debates e embates ocorridos estão sendo analisados pelo Ministério, como insumos para a formulação do Projeto de Lei que será enviado ao Congresso Nacional.
Em linhas gerais, as principais mudanças propostas são: a reorganização do Fundo Nacional de Cultura (FNC), a democratização da destinação dos recursos e a diversificação das fontes de financiamento que, além do Orçamento da União e da renúncia fiscal das empresas, contará com loterias federais (3%), fundos de investimentos regionais (1%) e a criação da Loteria Cultural, a ser operada pela Caixa Econômica Federal (CEF), com 100% da arrecadação destinada à cultura.
Mais do que uma revisão e uma atualização, o Programa de Fomento e Incentivo à Cultura (Profic) revoga a Lei Rouanet (Lei nº 8.313, de 23/12/1991), que já não tem mais sentido por ter sido criada numa perspectiva de que o mercado deveria mandar na cultura. Com o declínio do neoliberalismo, ficou obsoleto manter esse instrumento desalinhado dos avanços democráticos e com a estratégia de País que está sendo construída.
O papel da cultura na construção de novos sensos coletivos e na revitalização dos ambientes fundamentais ao exercício das vocações e convicções artísticas e intelectuais torna-se cada vez mais indispensável ao desenvolvimento em um mundo de multipolaridades, no qual cresce significativamente o valor dos bens simbólicos e dos conteúdos. O escopo da nova lei de cultura deve, portanto, delinear bem o que cabe ao Estado, à sociedade civil e a iniciativa privada nessa tarefa.
Os avanços pensados para a nova legislação são muitos. Um deles é a criação do Fundo Setorial das Artes, com a finalidade de valorizar as diversas linguagens artísticas. Atualmente, apenas o segmento do audiovisual tem tratamento diferenciado, em termos de benefícios fiscais, por ter a sua própria lei, a Lei nº 8.685, de 20/7/1993. No novo sistema, proposto pelo MinC, haverá cinco fundos setoriais: o Fundo do Audiovisual; o Fundo do Livro e da Leitura; o Fundo da Memória e do Patrimônio (material e imaterial); Fundo da Cidadania, Identidade e Diversidade Cultural; e o Fundo Global de Equalização.
Para atender à nova dimensão dada os segmentos culturais, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic) terá comitês paritários (governo e sociedade) para áreas específicas, imprimindo mais consistência nas avaliações do mérito artístico e cultural dos projetos. Assim, fica mais fácil pensar no estabelecimento de critérios públicos para uso dos recursos públicos no fomento e incentivo à cultura. O que é ou não relevante passa a seguir parâmetros próprios das atividades culturais e regionais, não ficando preso a argumentos economicistas, como os que justificavam a concentração de recursos no eixo Rio-São Paulo, com base no Produto Interno Bruto (PIB).
A superposição do valor de mercado em detrimento do valor artístico e cultural, patrocinada pela Lei Rouanet, é o que justifica a sua substituição pela Lei Juca Ferreira. Mas fica a história de um sucesso em seu tempo: sem contar com o financiamento do setor pelo Estado, o volume de recursos para a utilização em 2009, com benefícios da Lei Rouanet, é da ordem de R$ 1,3 bilhão. Nada desprezível. Nos últimos 18 anos, os departamentos de marketing das empresas movimentaram cerca de R$ 8 bilhões com renúncia fiscal.
A diferença fundamental do espírito das duas leis é que a primeira tinha a alma voltada para o incentivo fiscal e a nova tem o coração batendo por fomento, o que leva o Profic a um escalonamento por região e por tipo de atividade cultural. Enquanto a Rouanet brilhava os olhos pelo marketing cultural, a Juca Ferreira parece mais encantada com a vitalização dos pontos de cultura. Uma coisa não elimina a outra, mas o Estado precisa de mecanismos que permitam o estímulo a projetos culturais pouco atraentes para o mercado, a fim de dar ao povo brasileiro a oportunidade de se reconhecer na sua própria cultura.
Da forma que a cultura vem sendo tratada, as pessoas são induzidas a achar que os nossos produtos e serviços culturais se resumem às ofertas de entretenimento feitas pelo mercado. Daí a extrema necessidade de democratização do acesso à cultura. Os cidadãos e as cidadãs precisam saber o que existe de produção no País e os produtores e agentes culturais precisam ter a chance de mostrar o que fazem e o que é feito. Essa é a chave que me parece estar sendo modelada com a nova Lei, cujo sistema possibilitará a transferência de recursos do FNC para Estados, Municípios e para o Distrito Federal, como forma de descentralização e reconhecimento do poder local.
O único ponto que me deixa apreensivo com relação à política do MinC, e isso vai além da lei de cultura, é a recaída neoliberal de uma certa corrente de gestores do ministério com relação ao Direito Autoral, que vem causando um conflito entre “desinformados” e “desenformados” nas discussões que giram em torno do “culto ao amador” e “cultura livre”. Entretanto, com relação à nova lei que está sendo gestada, não vejo problema no artigo 49, que assegura ao Estado dispor das obras desenvolvidas a partir de incentivo fiscal e de recurso público direto, sobretudo quando para fins educacionais e de uso por parte dos órgãos de comunicação oficiais e públicos.
Essa exigência em nada afeta a Lei nº 9.610/1998, do Direito Autoral, pois ao aceitar os termos do contrato, o autor estará exercendo o seu direito exclusivo e inalienável de dispor sobre a sua criação. Desde, óbvio, que o autor receba um valor justo pelo seu trabalho, que seja preservado o seu direito autoral moral e que, no plano do direito autoral patrimonial, ele não fique impedido de explorar comercialmente a sua própria obra. Isto sim, seria um exemplo de cultura livre e não a aplicação forçada do novo padrão de copyright estadunidense, o Creative Commons, que, por incoerência política, o MinC vem querendo impor aos produtores de conteúdos no Brasil.
O uso por parte do Estado dos bens e serviços culturais produzidos com recursos públicos favorece à sociedade como um todo e não apenas às empresas que exploram o mercado de conteúdos. O caráter de acessibilidade é um dos aspectos mais positivos do novo sistema de fomento e de incentivo à cultura proposto pelo governo federal. No âmbito geral da iniciativa privada, a proposta prevê, entre outras coisas, a criação do vale-cultura, uma espécie de vale-refeição e de vale-transporte, a ser oferecido por aquelas empresas que querem mesmo contribuir com a formação da sensibilidade dos seus funcionários.
Realizada a consulta pública, como já mencionei, espera-se que o MinC realmente considere as opiniões que agreguem valor e atualidade na formulação do PL a ser apresentado ao Congresso Nacional, de forma que os mecanismos de apoio e estímulo à cultura sigam acompanhando o amadurecimento da democracia brasileira. Digo isso, considerando que tudo começou com a Lei Sarney, nº 7.505, de 2/7/1986, que virou Lei Rouanet, nº 8.313, de 23/12/1991, no governo Collor, que foi implementada no governo Fernando Henrique, e que, no governo Lula, precisa estar adequada ao processo de valorização do amálgama étnico brasileiro no diálogo global.